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segunda-feira, dezembro 15, 2008

Appaloosa - Uma Cidade Sem Lei


A melhor fonte de estudos para a arte do Romantismo é o Curso de Estética: O Belo na Arte, clássico do filósofo alemão G. W. F. Hegel (1770-1831). Analisando a revolução romântica no quente do momento, Hegel cruza as suas linhas em três vértices: amor, honra, lealdade. O foco central na dimensão do indivíduo – que caracteriza a mentalidade romântica – realiza-se segundo esses três valores que mais definem a sua identidade, o seu universo (íntimo). O indivíduo se realiza no amor (não há individualidade sem amor); a honra do indivíduo é algo (ou precisa ser) simplesmente inquebrantável, honra essa que perpassa não só a esfera da intimidade subjetiva, mas também as relações amorosas e de lealdade; o indivíduo como que estende o lençol de seu espírito sobre aqueles (ou às coisas) aos quais ele é leal – ou que lhe têm lealdade.

Honra, amor e lealdade é o que mais aparecerá na literatura romântica e o que mais aparecerá também no cinema do western. Os grandes faroestes (Ford, Mann, Hawks e o western spagetti) são obras filiadas de perto ao Romantismo, não apenas pela questão da epopéia de indivíduos que desbravam e conquistam novas e desconhecidas terras, mas pela questão filosófica mesmo de homens que tentam imprimir seu espírito e sua vontade num ambiente (semi) selvagem. As intrigas das fitas de bangue-bangue sempre envolvem de maneira muito clara e enfática o amor, a honra, ou a lealdade – às vezes, uma mistura explosiva entre todas.

O que se tem em Appaloosa (EUA, 2008, dir.: Ed Harris) é mais do que um epígono dos grandes mestres do gênero; a fita de Ed Harris soa como uma profissão de fé. Sua graça está em ser um filme que é diferente por ser igual a coisas que são diferentes do que se faz hoje. E a filiação aqui não é subserviente ou frívola como nos filmes de Quentin Tarantino. Ed Harris já é um homem (bem) maduro, sua direção lembra a classe e a serenidade de Clint Eastwood. É sempre importante lembrar que películas como Appaloosa ou Os Imperdoáveis (1992) não são nenhumas “reinvenções” de gênero. São produtos saudosos, mas de um saudosismo que ainda mantém a fibra da inspiração capaz de apontar caminhos futuros – dentre os quais, então, poder-se-á encontrar alguma reinvenção.

A tradição da honra, amor e lealdade, em Appaloosa, gira em torno do “triângulo” formado pelos personagens de Ed Harris, Viggo Mortensen e Renée Zellweger. O vilão da história, Jeremy Irons, no final das contas trabalhará mais como elemento estruturador do que desestruturador das relações e das situações. A função “orgânica” do elemento do “mal” é uma solução narrativa que mostra grande maturidade e ambição por parte do roteiro. Contudo, o que será mais interessante aqui é aquela espécie de “marca” que todo faroeste procura fixar no espírito do espectador, representada por uma cena, um personagem, um lugar, etc. Em Appaloosa, temos o fantástico personagem de Mortensen, filiado à tradição do herói solitário de John Wayne em Rastros de Ódio (1956) e O Homem Que Matou O Fascínora (1962).

segunda-feira, dezembro 08, 2008

poesia de um robozinho


MATÉRIA DA POESIA (fragmento)

Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para poesia

O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia
(...)

O que é bom para o lixo é bom para a poesia

Importante sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
sabe a destroços

As coisas jogadas fora
têm grande importância— como um homem jogado fora

Aliás é também objeto de poesia
saber qual o período médio
que um homem jogado fora
pode permanecer na terra sem nascerem
em sua boca as raízes da escória

As coisas sem importância são bens de poesia

Pois é assim que um chevrolé gosmento chega
ao poema, e as andorinhas de junho.

Manoel de Barros

sábado, dezembro 06, 2008

Queime Depois de Ler


Esta é mais uma deliciosa encenação daquele niilismo cínico, o velho pessimismo “cool” dos irmãos Coen – para quem aprecia, claro. Todas as marcas registradas dos diretores de Onde Os Fracos Não Têm Vez estão aqui: a parvoíce do norte-americano médio, a tragicomédia de erros, as pessoas que se acham maiores do que a vida, o “mcguffin”, a sutilíssima ironia, o humor-negro. Há definitivamente algo de Hitchcock – ou algo de clássico, que seja – nos Coen: a direção de atores em seus filmes possui aquela exatidão que só encontramos no cinema antigo: são incríveis os jogos de olhares, expressões faciais, gestos e posturas dotados da mais alta (e sempre sutil, jamais banal) expressividade.

Eis a natureza verdadeiramente cinematográfica de um filme como Queime Depois de Ler (EUA, 2008): o drama é carregado mais nos significantes visuais (a própria corporalidade do ator, especialmente em pequenos gestos ou expressões que dificilmente seriam captados por um espectador teatral) do que nos tradicionais diálogos verbais. Nos Coen, há um diálogo de corpos – nem sempre em acordo, naturalmente. Um diálogo violento, e sempre com imenso impacto visual. O elenco ajuda bastante para tanto: tem-se aqui um George Clooney que causará grande estranhamento a quem já está acostumado com o velho George Clooney.

O espectador também há de estranhar – e se divertir bastante – com um Brad Pitt caricatamente homossexual. Quanto a John Malkovitch, estão lá o grande espetáculo de intensidade, de loucura e de ridículo que casam muito bem com o próprio rosto do ator. Ah, e tem também a velha Frances McDormand, merecedora de mais um Oscar. O humor-negro e a ironia em Queime Depois de Ler são daquelas meias-tintas quase imperceptíveis – ou, para usar mais um termo hitchcockiano – daquela espécie de understatement. Não há praticamente nada, na forma do filme, que sugira o burlesco: o ritmo, a trilha sonora, o rigor da fotografia, tudo corresponde a um filme “sério”.

Mesmo assim, trata-se de uma comédia (!). Pode ser difícil de acreditar, mas o humor está no mais puro conteúdo, no enredo, nos acontecimentos mostrados (jamais na forma de mostrá-los, a qual procurará ser completamente o oposto, enriquecendo – e complicando mais ainda – o efeito da ironia). É claro que só achará tudo aquilo engraçado quem tiver a mente “doentia” o bastante para compartilhar da terrível visão de mundo “pós-moderna” dos diretores. Mas aí é que está o truque: tamanha cumplicidade autor-receptor só é exigida pelos grandes mestres – Machado de Assis, Clarice Lispector, Alfred Hitchcock, Charles Chaplin.

Quanto ao “mcguffin”, para os Coen ele tem ainda menos importância do que aquela pouca importância (pretexto) que lhe é proverbial. O CD com dados “confidenciais” da CIA é pouco mais que nada... No entanto, as repercussões e conseqüências factuais – e sobretudo humanas – que ele provocará são de outra e muito mais elevada ordem. É aí que começa a se mostrar a filosofia social dos cineastas: em nossas vidinhas pequeno-burguesas, permeadas por fantasias hollywoodianas, pretendemos sempre que haja grandes narrativas, acontecimentos bombásticos do destino, daqueles que são vendidos (ou prometidos) constantemenste pelos “best-sellers” de auto-ajuda.

Pretendemos que nossas vidas – e o mundo – sejam dotados da mais perfeita coerência e significação (sem esquecer o final feliz) dos filmes de aventuras, de espionagem, filmes policiais, comédias românticas, etc. Mas o único quinhão que nos é dado é o desengano, a desilusão, a trapaça, o equívoco, a frustração, a tola e falsa expectativa. E, acima de tudo: a dúvida, eterna dúvida, a incerteza que fere mais do que qualquer arma; e também o acaso, o mais ridículo acaso, eis a natureza das coisas, a natureza do universo. Não há nada que o bicho-homem possa fazer em relação a isso, mas a grande causa do nosso sofrimento é simplesmente não enxergarmos e não aceitarmos tais “verdades”.

quinta-feira, dezembro 04, 2008

Hancock


Nós não engolimos mais os heróis no sentido clássico do termo, feliz ou infelizmente. Assim, neste mundo desmitologizado, Hancock aparece como mais uma das cada vez mais freqüentes versões para o cinema contemporâneo do herói pós-moderno, humano, demasiado humano. Anti-herói? Que seja. Mas Hancock (EUA, 2008,dir.: Peter Berg) trabalha com a tal “pós-modernidade” do herói de maneira mais rica do que muitas das produções que tentam pegar algo da cultura pop e lhe dar ares mais inteligentes, des-construtivos. Boa parte da diferenciação criativa de Hancock responde pelo nome de Will Smith. Esta é mais uma fita-vitrine para o ator, o que não é nada mal, pois Smith é perfeitamente dotado do que se exige para segurar um filme inteiro nas costas, e, além do mais, as produções para as quais ele nos dá o ar da sua graça são bastante dignas de respeito.

Alguém disse que o grande ator de cinema é bem diferente do grande ator de teatro. Enquanto este brinca com toda a versatilidade da arte de atuar, aquele “nada mais faz” do que encarnar e vivenciar um tipo – muitas vezes representando a sua própria personalidade. Dar estilo ao caráter, como disse Nietzche. Sendo assim, creiamos que os dois maiores gênios da atuação “carismática” na Hollywood de hoje são Will Smith e Johnny Depp (imagine um filme reunindo os dois). Hancock é um filme altamente estiloso – o que também pode se explicar (ou especular) levando-se em conta que um dos produtores (e quase diretor, segundo o “making of”) é ninguém menos que Michael Mann. O filme – assim como Smith – possui aquele charme arrebatador e espontâneo (aparentemente). Não se trata de nada humilde, mas nada de mão pesada (ou cabeça, ou coração), por outro lado.

Desconstrução dos mitos, ironia, anti-heroísmo, pós-modernidade (as tão polêmicas questões de identidade), um certo niilismo, tudo isso casa muito bem no filme com explosões, batalhas épicas, efeitos em computação gráfica. Mas não nos esqueçamos que Hancock não empreende nenhuma iconoclastia. O fundo do filme é bem assentado em velhos princípios (apesar de estes aparecerem particularmente banalizados e simplificados demais no final, contrariando com isso o tom geral da narrativa, mais aberta e complexa – enfim, alguma concessão há de se fazer numa superprodução). Tais princípios mantém o valor do mito heróico, no sentido clássico mesmo. O herói como espécime de uma raça de “deuses”, deliciosamente incoerente no que mistura em si o melhor (e além) e o pior (mas nunca aquém) de qualquer ser humano.

Mas isso já não é novidade nenhuma – basta consultar a velha (quase três mil anos) “Ilíada” de Homero. O interessante é misturar isso às linguagens, códigos e ideologias da sociedade (pós) moderna de consumo, afogada nas mais demiúrgicas formas da indústria cultural. Imagine ver um vídeo caseiro de Hércules ou Aquiles no Youtube. Eis o tom de Hancock. Não necessitamos mais do poeta-profeta vidente dos tempos míticos que, com o poder de sua assombrosa memória, nos relate – com a óbvia ajuda das musas – as façanhas de deuses e heróis. Temos a inteligência diabólica da máquina: cinema, internet. Nas palavras de Charlize Theron, super-heróis são apenas o nome mais recente para os sempre mesmos mitos. É na recriação criativa – sem subserviência, mas também sem excessivas desmitificações – de velhas tradições (incluindo a nova tradição velha dos filmes ou gibis de super-heróis) que Hancock retira sua força.