Quais os contos de fadas possíveis neste mundo em que a barbárie se faz tão presente? Quais os contos de fadas possíveis num mundo traspassado por nazismo, industrialização, consumismo, aquecimento global, FBI, indústria cultural, mídia de massas, Internet, etc? Quais os contos de fadas possíveis num mundo dividido entre positivismo, niilismo, materialismo histórico, psicanálise, existencialismo, ecologia, estruturalismo, semiótica, pós-modernismo, fragmentação do sujeito, etc? Será que existe algum conto de fadas possível nesta era dos extremos? Guillermo Del Toro parece acreditar que sim. E não se trata de um conto de fadas desencantado, niilista, metalingüístico – um conto de fadas “que desconstrói” os contos de fadas tradicionais, o que pode até ser moda hoje em dia.
Guillermo Del Toro não faz isso. Se fizesse, estaria tomando o lado da “modernidade”, abraçando a onda da malícia (o ápice do espírito “pós-moderno”) que parece arrastar tudo junto de si para Deus sabe lá onde. Guillermo Del Toro segue a linha da fábula tradicional, com veias totalizantes. Os absolutos não podem ser perdidos de vista (pelo menos, não algum deles). Mas o diretor e roteirista aprendeu o que teve de aprender da lição moderna: as suas fábulas são conscientes – o que não quer dizer necessariamente que elas sejam desencantadas. Eis o discernimento que muitas inteligências “mudernas” e “pós-mudernas” parecem não ser capazes de fazer, de maneira alguma. Del Toro é uma das pouquíssimas visões de mundo que poderíamos chamar de sublime, em nosso tempo.
Os filmes de Del Toro procuram fazer um reencantamento do mundo. Mas este processo é o de dar um novo encanto às coisas, pois após Marx, Nietzche, Freud, Ford e Hitler já não é possível – de fato – retomarmos a linha cortada dos antigos encantos. Cineastas como Del Toro devolvem ao cinema (mas de uma outra e nova maneira) algo com que o cinema nasceu, e que foi, durante algum tempo, sua grande promessa; mas este é um algo que logo se perdeu, foi desviado, deformado, violentado e eventualmente assassinado. Este novo encanto vestirá algumas peças do velho encanto, mas misturará com novas, e novas que estão sempre sendo inventadas, a todo momento. Eis a maneira particularmente moderna com que artistas do naipe de Del Toro analisam todos os fragmentos e relatividades que formam o “zeitgeist” contemporâneo, e junta-os numa síntese universalizante, totalizante.
Estamos aqui no campo de uma dialética bastante positiva – mas jamais positivista. Um filme como Hellboy II: O Exército Dourado (“Hellboy II: The Golden Army”, EUA / Alemanha, 2008) traz, no bojo de seus referentes e mensagens – assim como no bojo de sua própria construção enquanto código – uma síntese entre o racional, o lógico, o civilizado, o cultural, o adulto, o industrial; e o primitivo, o arquétipo, o poético, o ritual, o mágico, o infantil, a natureza. O universo de Del Toro: seres teriomórficos habitando passagens secretas do metrô das metrópoles; criaturas míticas disfarçadas de velhinhas mendicantes, mundos subterrâneos habitados por seres ressentidos, e ressentidos por quê? Pois nós (a civilização ocidental) os exilamos lá. São refugiados. O mercado dos trolls parece uma favela, é um cenário típico de Terceiro Mundo ou de zona de guerra.
Tais criaturas, que um dia habitaram a superfície do nosso planeta, criaturas nobres como o rei élfico Balor, estão hoje relegados aos esgotos, às ruínas de fábricas, linhas de metrô desativadas, etc. Não é à toa que o seu filho, o príncipe Nuada, particularmente ressentido, revoltar-se-á contra o mundo humano. Mas será ele realmente o vilão dessa história? Cinematograficamente, a fábula se revela com grande e belíssimo impacto visual: a fotografia e a direção de arte nos filmes de Del Toro são a sua grande assinatura estilística. E o mais fantástico é reconhecer que o surrealismo tão impressionante das imagens de Hellboy II é o que mais contribui para desvelar o caráter alegórico dessas mesmas imagens. Os seres e lugares mágicos que preenchem o filme devem ser lidos na chave da polêmica entre o racional e o poético, chave que abre as portas para o mundo de Del Toro, tal como também se revela em O Labirinto do Fauno (2006).
A nossa civilização e a nossa cultura destruíram a natureza, vegetal ou animal (a cena da luta entre Hellboy e o elemental é das mais significativas e belas como cinema), e também a nossa própria natureza humana. Os mitos e arquétipos que fundaram o nosso ser (e também a nossa própria cultura, através das religiões, lendas, literatura, etc) foram expulsos, pela nova civilização “iluminista”, para as cavernas subterrâneas e obscuras do inconsciente. Nós os reprimimos, trancamos lá. Mas o inconsciente, ao contrário do que mostra A História Sem Fim (1984, Wolfgang Petersen) não fica situado num lugar distante e inatingível, enquanto provocamos, sem querer querendo, a sua lenta erosão. O inconsciente está à beira da nossa tão querida casa da consciência. Basta abrirmos as portas ou janelas, e ele entrará.
Em Del Toro, as coisas que abandonamos estão logo abaixo de nós, nas ruínas, esgotos e cavernas de nosso próprio mundo. É como se as tivéssemos varrido para debaixo do tapete de nossa casa. E, o que é mais interessante: às vezes, alguma coisa do “mundo subterrâneo” escapa, cai sem querer em nosso mundo (ou o invade mesmo), seja essa coisa um menino demônio que será criado pelo exército dos EUA, um elfo, um troll ou uma “fada dos dentes”. A frase de Nuada, a este propósito, é altamente significativa, de potencial verdadeiramente revolucionário: “Algo para lembrar-lhes o porquê de vocês terem um dia temido a escuridão”. Hoje, no conforto elétrico de nossos cômodos bem iluminados, não tememos mais o escuro, mas junto desse medo também perdemos (ou destruímos) muitas outras coisas da maior importância psíquica e social.
Com isso, é claro que a grande revolução de que o nosso mundo realmente precisa jamais se fará através de algo chamado “materialismo histórico”... Não adianta negarmos as coisas subterrâneas, elas não desaparecerão de nossa vista, ainda que sejam necessários olhos “especiais” para enxergá-las, tal o nível da alienação – a verdadeira alienação. Eis porque o conto de fadas de Guillermo Del Toro é consciente. Hellboy II é um filme político, mas de uma política que gostaríamos de ver mais e mais. As criaturas mágicas de Del Toro representam tudo aquilo que excluímos, que segregamos de nossa sociedade e de nossas mentes conscientes. Eis o perpétuo holocausto. Um dos “vilões” em Hellboy (o primeiro, de 2004) usa bem a propósito a palavra holocausto.
A revolução promovida pelas criaturas mágicas de Del Toro lembra bastante, neste aspecto, a revolução promovida pelos “zumbis” de George Romero. São fortes alegorias, muito contemporâneas. E não podem ser reduzidas à chave tão simplista: burguesia-proletariado. O buraco é muito mais embaixo. O fato de Hellboy e os seus companheiros “anormais” se demitirem do serviço secreto norte-americano no final deste filme é a chave de ouro do soneto. Isto é, não querem mais fazer o trabalho sujo de eliminar os “monstros” que “invadem” o nosso mundo. Deixe-os chegarem e se instalarem, à vontade. O mundo também é deles.
Guillermo Del Toro não faz isso. Se fizesse, estaria tomando o lado da “modernidade”, abraçando a onda da malícia (o ápice do espírito “pós-moderno”) que parece arrastar tudo junto de si para Deus sabe lá onde. Guillermo Del Toro segue a linha da fábula tradicional, com veias totalizantes. Os absolutos não podem ser perdidos de vista (pelo menos, não algum deles). Mas o diretor e roteirista aprendeu o que teve de aprender da lição moderna: as suas fábulas são conscientes – o que não quer dizer necessariamente que elas sejam desencantadas. Eis o discernimento que muitas inteligências “mudernas” e “pós-mudernas” parecem não ser capazes de fazer, de maneira alguma. Del Toro é uma das pouquíssimas visões de mundo que poderíamos chamar de sublime, em nosso tempo.
Os filmes de Del Toro procuram fazer um reencantamento do mundo. Mas este processo é o de dar um novo encanto às coisas, pois após Marx, Nietzche, Freud, Ford e Hitler já não é possível – de fato – retomarmos a linha cortada dos antigos encantos. Cineastas como Del Toro devolvem ao cinema (mas de uma outra e nova maneira) algo com que o cinema nasceu, e que foi, durante algum tempo, sua grande promessa; mas este é um algo que logo se perdeu, foi desviado, deformado, violentado e eventualmente assassinado. Este novo encanto vestirá algumas peças do velho encanto, mas misturará com novas, e novas que estão sempre sendo inventadas, a todo momento. Eis a maneira particularmente moderna com que artistas do naipe de Del Toro analisam todos os fragmentos e relatividades que formam o “zeitgeist” contemporâneo, e junta-os numa síntese universalizante, totalizante.
Estamos aqui no campo de uma dialética bastante positiva – mas jamais positivista. Um filme como Hellboy II: O Exército Dourado (“Hellboy II: The Golden Army”, EUA / Alemanha, 2008) traz, no bojo de seus referentes e mensagens – assim como no bojo de sua própria construção enquanto código – uma síntese entre o racional, o lógico, o civilizado, o cultural, o adulto, o industrial; e o primitivo, o arquétipo, o poético, o ritual, o mágico, o infantil, a natureza. O universo de Del Toro: seres teriomórficos habitando passagens secretas do metrô das metrópoles; criaturas míticas disfarçadas de velhinhas mendicantes, mundos subterrâneos habitados por seres ressentidos, e ressentidos por quê? Pois nós (a civilização ocidental) os exilamos lá. São refugiados. O mercado dos trolls parece uma favela, é um cenário típico de Terceiro Mundo ou de zona de guerra.
Tais criaturas, que um dia habitaram a superfície do nosso planeta, criaturas nobres como o rei élfico Balor, estão hoje relegados aos esgotos, às ruínas de fábricas, linhas de metrô desativadas, etc. Não é à toa que o seu filho, o príncipe Nuada, particularmente ressentido, revoltar-se-á contra o mundo humano. Mas será ele realmente o vilão dessa história? Cinematograficamente, a fábula se revela com grande e belíssimo impacto visual: a fotografia e a direção de arte nos filmes de Del Toro são a sua grande assinatura estilística. E o mais fantástico é reconhecer que o surrealismo tão impressionante das imagens de Hellboy II é o que mais contribui para desvelar o caráter alegórico dessas mesmas imagens. Os seres e lugares mágicos que preenchem o filme devem ser lidos na chave da polêmica entre o racional e o poético, chave que abre as portas para o mundo de Del Toro, tal como também se revela em O Labirinto do Fauno (2006).
A nossa civilização e a nossa cultura destruíram a natureza, vegetal ou animal (a cena da luta entre Hellboy e o elemental é das mais significativas e belas como cinema), e também a nossa própria natureza humana. Os mitos e arquétipos que fundaram o nosso ser (e também a nossa própria cultura, através das religiões, lendas, literatura, etc) foram expulsos, pela nova civilização “iluminista”, para as cavernas subterrâneas e obscuras do inconsciente. Nós os reprimimos, trancamos lá. Mas o inconsciente, ao contrário do que mostra A História Sem Fim (1984, Wolfgang Petersen) não fica situado num lugar distante e inatingível, enquanto provocamos, sem querer querendo, a sua lenta erosão. O inconsciente está à beira da nossa tão querida casa da consciência. Basta abrirmos as portas ou janelas, e ele entrará.
Em Del Toro, as coisas que abandonamos estão logo abaixo de nós, nas ruínas, esgotos e cavernas de nosso próprio mundo. É como se as tivéssemos varrido para debaixo do tapete de nossa casa. E, o que é mais interessante: às vezes, alguma coisa do “mundo subterrâneo” escapa, cai sem querer em nosso mundo (ou o invade mesmo), seja essa coisa um menino demônio que será criado pelo exército dos EUA, um elfo, um troll ou uma “fada dos dentes”. A frase de Nuada, a este propósito, é altamente significativa, de potencial verdadeiramente revolucionário: “Algo para lembrar-lhes o porquê de vocês terem um dia temido a escuridão”. Hoje, no conforto elétrico de nossos cômodos bem iluminados, não tememos mais o escuro, mas junto desse medo também perdemos (ou destruímos) muitas outras coisas da maior importância psíquica e social.
Com isso, é claro que a grande revolução de que o nosso mundo realmente precisa jamais se fará através de algo chamado “materialismo histórico”... Não adianta negarmos as coisas subterrâneas, elas não desaparecerão de nossa vista, ainda que sejam necessários olhos “especiais” para enxergá-las, tal o nível da alienação – a verdadeira alienação. Eis porque o conto de fadas de Guillermo Del Toro é consciente. Hellboy II é um filme político, mas de uma política que gostaríamos de ver mais e mais. As criaturas mágicas de Del Toro representam tudo aquilo que excluímos, que segregamos de nossa sociedade e de nossas mentes conscientes. Eis o perpétuo holocausto. Um dos “vilões” em Hellboy (o primeiro, de 2004) usa bem a propósito a palavra holocausto.
A revolução promovida pelas criaturas mágicas de Del Toro lembra bastante, neste aspecto, a revolução promovida pelos “zumbis” de George Romero. São fortes alegorias, muito contemporâneas. E não podem ser reduzidas à chave tão simplista: burguesia-proletariado. O buraco é muito mais embaixo. O fato de Hellboy e os seus companheiros “anormais” se demitirem do serviço secreto norte-americano no final deste filme é a chave de ouro do soneto. Isto é, não querem mais fazer o trabalho sujo de eliminar os “monstros” que “invadem” o nosso mundo. Deixe-os chegarem e se instalarem, à vontade. O mundo também é deles.
André, bela interpretação do filme. Para mim, Hellboy é o melhor personagem de HQ.
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