O sobrenatural não é um elemento exótico, imaterial, que invade e se infiltra por entre os espaços “vazios” do mundo material – a velha história do monstro dentro do armário ou o fantasma debaixo da cama. O sobrenatural não é algo em si, mas ele se revela através de um rearranjo de objetos, um deslocamento misterioso da ordem das coisas. “Quem tirou de cima da estante o retrato do ente falecido e o colocou no pára-peito da janela?” Eis a questão. Como podem os objetos “ganharem vida”? No sobrenatural, as coisas são atribuídas de uma alma (tornam-se animadas). Mas que vontade é essa que as anima? É o sopro de um espírito “zombeteiro”, sua essência inefável e intangível que só pode ser pressentida, pressuposta, adivinhada graças aos rastros materiais que nossa lógica relaciona à sua ação.
O objeto – em princípio inanimado – é a mediação (o “médium”), o canal que estabelece o contato de comunicação entre a alma incorpórea do fantasma e a alma encarnada de seu interlocutor (a pessoa assombrada: sombra-alma que não é apenas a sua mas também a de outrem), no complexo diálogo entre o físico e o metafísico. Vai além das palavras a fascinação – e o medo – que sentimos por qualquer objeto banal no qual reconhecemos indícios, marcas da subjetividade sobrenatural. Tal sujeito está absente (no espaço e no tempo), mas podemos percebê-lo através do efeito concreto de seu ato transformador, que acaba por presentificá-lo na nossa imaginação e inteligência. Dessa maneira, o objeto banal ganha um status que vai além do mero ícone. Ele também é índice: como uma palavra qualquer, ele significa e comunica algo que transcende sua corporeidade material.
É o Poltergeist. O sobrenatural brinca com a gente, num jogo de esconde-acha, um jogo de pistas cuidadosamente plantadas. É uma corrida ao “ouro” que se revela ser nada mais do que a verdade. Mas uma verdade que, por ter sido tão recalcada, reprimida, sublimada (e quaisquer outras terminologias psicanalíticas que se queira adotar), transformará o momento da sua grande descoberta em uma profunda transcendência. Transcendência em relação a um padrão de vida e de mundo que nos mal-acostumamos a chamar de real, de normal. É a grande jornada, que percorrerá e desbravará espaços exteriores e interiores, em todos os seus mais profundos recônditos e mistérios, abraçando toda a sua aparentemente infinita amplidão. A psicologia analítica de Jung bem que estuda o espaço arquitetonicamente elaborado do lar como símbolo do espaço também muito elaborado da psique interna do indivíduo, principalmente o seu inconsciente.
É comum em sonhos o processo de descobrir e explorar cômodos “inexistentes” de nosso lar. É a sugestão para a descoberta e exploração de “cômodos” ainda não percebidos de nossa própria psique inconsciente. A exploração que a mãe faz da antiga mansão em que vive, à procura de seu filho desaparecido, mansão essa que servia de orfanato no qual essa mesma mãe crescera, não é apenas uma viagem espacial externa; é também – e principalmente – um mergulho em sua própria alma interior, e um mergulho também no tempo. A grande transcendência está na síntese final entre o objetivo e o subjetivo. É o momento em que os dois planos estarão tão intrinsecamente ligados um ao outro que já não haverá qualquer diferenciação. Esta é a jornada humana de reconquista do “Éden”. O retorno à infância primordial, à ingenuidade original anterior ao trágico processo de dissociação entre o consciente e o inconsciente, que caracteriza a história e o “progresso” humano. A simbiose redentora em que cuidamos e somos cuidados ao mesmo tempo.
“Poltergeist”: o espírito das coisas, ou nas coisas. Mas temos também aqui o Zeitgeist: o espírito do tempo, ou no tempo. A memória dos objetos, a memória nos objetos: fortes energias psíquicas que “mancham” as coisas, os ambientes e o próprio tecido do tempo. Entre o físico e o metafísico, entre o normal e o paranormal, entre o corpo e o espírito, entre o presente e o passado, entre o órfão e o adotado, entre a mãe e o filho, entre o infantil e o adulto, entre o sujeito e o objeto é que se faz a poesia, quer acreditemos nela ou não. É na intersecção de planos e de linhas, na síntese simbiótica dos organismos autômatos, que se faz a arte – e não só a do Cinema. E essa arte, ainda que se construa em cima dos códigos do “terror” (pois o processo de descoberta psíquica não ocorre sem medo ou perigo), será no fundo a arte mais primitiva – e mais moderna a um só tempo: a arte da fábula (a qual promove a união dos tempos, a retomada, a recorrência dos mitos-arquétipos mais fundamentais). O processo de fabulação que foi o nascimento da inteligência humana, através do qual as primeiras e mais importantes verdades foram descobertas e transmitidas.
O objeto – em princípio inanimado – é a mediação (o “médium”), o canal que estabelece o contato de comunicação entre a alma incorpórea do fantasma e a alma encarnada de seu interlocutor (a pessoa assombrada: sombra-alma que não é apenas a sua mas também a de outrem), no complexo diálogo entre o físico e o metafísico. Vai além das palavras a fascinação – e o medo – que sentimos por qualquer objeto banal no qual reconhecemos indícios, marcas da subjetividade sobrenatural. Tal sujeito está absente (no espaço e no tempo), mas podemos percebê-lo através do efeito concreto de seu ato transformador, que acaba por presentificá-lo na nossa imaginação e inteligência. Dessa maneira, o objeto banal ganha um status que vai além do mero ícone. Ele também é índice: como uma palavra qualquer, ele significa e comunica algo que transcende sua corporeidade material.
É o Poltergeist. O sobrenatural brinca com a gente, num jogo de esconde-acha, um jogo de pistas cuidadosamente plantadas. É uma corrida ao “ouro” que se revela ser nada mais do que a verdade. Mas uma verdade que, por ter sido tão recalcada, reprimida, sublimada (e quaisquer outras terminologias psicanalíticas que se queira adotar), transformará o momento da sua grande descoberta em uma profunda transcendência. Transcendência em relação a um padrão de vida e de mundo que nos mal-acostumamos a chamar de real, de normal. É a grande jornada, que percorrerá e desbravará espaços exteriores e interiores, em todos os seus mais profundos recônditos e mistérios, abraçando toda a sua aparentemente infinita amplidão. A psicologia analítica de Jung bem que estuda o espaço arquitetonicamente elaborado do lar como símbolo do espaço também muito elaborado da psique interna do indivíduo, principalmente o seu inconsciente.
É comum em sonhos o processo de descobrir e explorar cômodos “inexistentes” de nosso lar. É a sugestão para a descoberta e exploração de “cômodos” ainda não percebidos de nossa própria psique inconsciente. A exploração que a mãe faz da antiga mansão em que vive, à procura de seu filho desaparecido, mansão essa que servia de orfanato no qual essa mesma mãe crescera, não é apenas uma viagem espacial externa; é também – e principalmente – um mergulho em sua própria alma interior, e um mergulho também no tempo. A grande transcendência está na síntese final entre o objetivo e o subjetivo. É o momento em que os dois planos estarão tão intrinsecamente ligados um ao outro que já não haverá qualquer diferenciação. Esta é a jornada humana de reconquista do “Éden”. O retorno à infância primordial, à ingenuidade original anterior ao trágico processo de dissociação entre o consciente e o inconsciente, que caracteriza a história e o “progresso” humano. A simbiose redentora em que cuidamos e somos cuidados ao mesmo tempo.
“Poltergeist”: o espírito das coisas, ou nas coisas. Mas temos também aqui o Zeitgeist: o espírito do tempo, ou no tempo. A memória dos objetos, a memória nos objetos: fortes energias psíquicas que “mancham” as coisas, os ambientes e o próprio tecido do tempo. Entre o físico e o metafísico, entre o normal e o paranormal, entre o corpo e o espírito, entre o presente e o passado, entre o órfão e o adotado, entre a mãe e o filho, entre o infantil e o adulto, entre o sujeito e o objeto é que se faz a poesia, quer acreditemos nela ou não. É na intersecção de planos e de linhas, na síntese simbiótica dos organismos autômatos, que se faz a arte – e não só a do Cinema. E essa arte, ainda que se construa em cima dos códigos do “terror” (pois o processo de descoberta psíquica não ocorre sem medo ou perigo), será no fundo a arte mais primitiva – e mais moderna a um só tempo: a arte da fábula (a qual promove a união dos tempos, a retomada, a recorrência dos mitos-arquétipos mais fundamentais). O processo de fabulação que foi o nascimento da inteligência humana, através do qual as primeiras e mais importantes verdades foram descobertas e transmitidas.
André, gostei muito do texto. Mas,
ResponderExcluire aí, "O Orfanato" é bom ou não??
É bom, mais por esse conteúdo viajante dele... porque, pela forma, o filme é meio convencional, é muito puxado em vários outros filmes de terror ou fantasia. Não é muito original, mas também não fica abaixo das suas fontes...
ResponderExcluirSinistro. De onde tirou tal foto??? 6º sentido ou Os outros???
ResponderExcluirA foto é do Orfanato mesmo... Provavelmente é uma foto publicitária, pois no filme não existe nenhuma cena com essa imagem...
ResponderExcluirTive muito dessa sensação de déjà vu ao longo de O Orfanato, inclusive nas cenas ditas mais arrepiantes. É um bom filme, mas fico com o original Os Inocentes.
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