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domingo, março 30, 2008

O Orfanato


O sobrenatural não é um elemento exótico, imaterial, que invade e se infiltra por entre os espaços “vazios” do mundo material – a velha história do monstro dentro do armário ou o fantasma debaixo da cama. O sobrenatural não é algo em si, mas ele se revela através de um rearranjo de objetos, um deslocamento misterioso da ordem das coisas. “Quem tirou de cima da estante o retrato do ente falecido e o colocou no pára-peito da janela?” Eis a questão. Como podem os objetos “ganharem vida”? No sobrenatural, as coisas são atribuídas de uma alma (tornam-se animadas). Mas que vontade é essa que as anima? É o sopro de um espírito “zombeteiro”, sua essência inefável e intangível que só pode ser pressentida, pressuposta, adivinhada graças aos rastros materiais que nossa lógica relaciona à sua ação.

O objeto – em princípio inanimado – é a mediação (o “médium”), o canal que estabelece o contato de comunicação entre a alma incorpórea do fantasma e a alma encarnada de seu interlocutor (a pessoa assombrada: sombra-alma que não é apenas a sua mas também a de outrem), no complexo diálogo entre o físico e o metafísico. Vai além das palavras a fascinação – e o medo – que sentimos por qualquer objeto banal no qual reconhecemos indícios, marcas da subjetividade sobrenatural. Tal sujeito está absente (no espaço e no tempo), mas podemos percebê-lo através do efeito concreto de seu ato transformador, que acaba por presentificá-lo na nossa imaginação e inteligência. Dessa maneira, o objeto banal ganha um status que vai além do mero ícone. Ele também é índice: como uma palavra qualquer, ele significa e comunica algo que transcende sua corporeidade material.

É o Poltergeist. O sobrenatural brinca com a gente, num jogo de esconde-acha, um jogo de pistas cuidadosamente plantadas. É uma corrida ao “ouro” que se revela ser nada mais do que a verdade. Mas uma verdade que, por ter sido tão recalcada, reprimida, sublimada (e quaisquer outras terminologias psicanalíticas que se queira adotar), transformará o momento da sua grande descoberta em uma profunda transcendência. Transcendência em relação a um padrão de vida e de mundo que nos mal-acostumamos a chamar de real, de normal. É a grande jornada, que percorrerá e desbravará espaços exteriores e interiores, em todos os seus mais profundos recônditos e mistérios, abraçando toda a sua aparentemente infinita amplidão. A psicologia analítica de Jung bem que estuda o espaço arquitetonicamente elaborado do lar como símbolo do espaço também muito elaborado da psique interna do indivíduo, principalmente o seu inconsciente.

É comum em sonhos o processo de descobrir e explorar cômodos “inexistentes” de nosso lar. É a sugestão para a descoberta e exploração de “cômodos” ainda não percebidos de nossa própria psique inconsciente. A exploração que a mãe faz da antiga mansão em que vive, à procura de seu filho desaparecido, mansão essa que servia de orfanato no qual essa mesma mãe crescera, não é apenas uma viagem espacial externa; é também – e principalmente – um mergulho em sua própria alma interior, e um mergulho também no tempo. A grande transcendência está na síntese final entre o objetivo e o subjetivo. É o momento em que os dois planos estarão tão intrinsecamente ligados um ao outro que já não haverá qualquer diferenciação. Esta é a jornada humana de reconquista do “Éden”. O retorno à infância primordial, à ingenuidade original anterior ao trágico processo de dissociação entre o consciente e o inconsciente, que caracteriza a história e o “progresso” humano. A simbiose redentora em que cuidamos e somos cuidados ao mesmo tempo.

“Poltergeist”: o espírito das coisas, ou nas coisas. Mas temos também aqui o Zeitgeist: o espírito do tempo, ou no tempo. A memória dos objetos, a memória nos objetos: fortes energias psíquicas que “mancham” as coisas, os ambientes e o próprio tecido do tempo. Entre o físico e o metafísico, entre o normal e o paranormal, entre o corpo e o espírito, entre o presente e o passado, entre o órfão e o adotado, entre a mãe e o filho, entre o infantil e o adulto, entre o sujeito e o objeto é que se faz a poesia, quer acreditemos nela ou não. É na intersecção de planos e de linhas, na síntese simbiótica dos organismos autômatos, que se faz a arte – e não só a do Cinema. E essa arte, ainda que se construa em cima dos códigos do “terror” (pois o processo de descoberta psíquica não ocorre sem medo ou perigo), será no fundo a arte mais primitiva – e mais moderna a um só tempo: a arte da fábula (a qual promove a união dos tempos, a retomada, a recorrência dos mitos-arquétipos mais fundamentais). O processo de fabulação que foi o nascimento da inteligência humana, através do qual as primeiras e mais importantes verdades foram descobertas e transmitidas.

sábado, março 29, 2008

Cinematheque: Cinema Noir


A notícia da mais nova atualização no Cinematheque chega um pouco atrasada, mas aí vai.

http://blogcinemateque.wordpress.com/

A bola da vez é o Cinema Noir. A minha contribuição é com um texto que discute as origens barrocas do cinema “preto”.

http://blogcinemateque.wordpress.com/2008/03/19/o-cinema-barroco/

Até.

sexta-feira, março 28, 2008

Pulador


A propaganda na TV de Jumper (EUA, 2008, dir.: Doug Liman), filme que estréia hoje, termina dizendo o seguinte:

Venha ver o que você nunca viu antes!

Pois bem. Acontece é que só de ver o trailer dessa fita, eu já me lembrei, imediatamente, de algumas outras coisinhas que eu já vi antes. Aí vão elas:

“Scanners” (1981)
“Scanners II” (1991)
“Scanners III” (1992)
“Energia Pura” (Powder, 1995)
“X-Men” (2000)
“X-Men 2” (2003)
“X-Men 3” (2006)
“Heroes” (2006-2008: série de TV que, até agora, totaliza uns 35 episódios de 40 minutos cada um, divididos em 2 temporadas)

Acho que vou pular esse “Pulador”...

segunda-feira, março 24, 2008

O Retorno de Coppola


O texto abaixo saiu na edição de novembro da Cahiers du Cinema.

A Terceira Rosa entre os Dentes

por Jean-Michel Frodon

Ele está de volta. É difícil estabelecer comparações para o retorno de Francis Ford Coppola à tela grande dez anos depois de O Homem Que Fazia Chover. Pois Coppola encarna, como ninguém, as conquistas, as esperanças, as contradições e as utopias do Cinema. Deveria eu acrescentar “do cinema americano desde os anos setenta até os anos 90”? Isto seria tão verdadeiro quanto reducionista. Lembremo-nos de uma história que, de tão conhecida, acaba sendo constantemente esquecida:
1) Um tremendo artista do filme no sentido da inventividade estética, como visto na jamais rivalizada aventura de Apocalipse Now; a trilogia O Poderoso Chefão, com os episódios 2 e 3 construídos sobre e contra a obra prévia; a extraordinária variedade de invenção formal que atinge as raízes das coisas em A Conversação, Jardins de Pedra, O Selvagem da Motocicleta, Tucker – Um Homem e seu Sonho e o injustamente depreciado e surpreendente Jack.
2) Um visionário em seu próprio tempo, um tempo que ele não tem descrito muito, mas o tem questionado com grande profundidade através dos métodos da ficção e do espetáculo cinematográfico.
3) O autor de uma pessoal e coerente meditação, que corre por todo o seu trabalho, sobre seres humanos colocados no tempo.
4) O audacioso estrategista de uma hipotética indústria alternativa ao modelo de Hollywood, cujo fracasso revela mais sobre a coragem e a energia despendidas do que sobre a impossibilidade do projeto.
5) Um pioneiro de inovações tecnológicas concebidas tanto num plano estético quanto econômico, com grandes marcos como as apostas de One From The Heart e Megalopolis, o projeto que permaneceu escorregando além do horizonte. A equação Coppola: 1+2+3+4+5=cinema.

Ainda que a equação dificilmente resuma uma vida ou o conjunto de uma obra, ela oferece algumas referências para esboçar a silhueta de um homem e de uma idéia em transformação, com mais do que a sua parcela de drama e de fracasso. Ainda que Coppola se apresente a si mesmo como um ícone jocoso, um fabricante de bons vinhos, um latino homem de família e um jovial contador de histórias, a dimensão trágica continua a persegui-lo. Enquanto ele se prepara para revelar ao mundo o seu vigésimo primeiro filme, o golpe que sofreu recentemente – um roubo brutal e a perda de grande parte dos seus arquivos – parece bem mais do que uma notícia banal. Qualquer um que tenha visto um filme sequer de Coppola pode adivinhar o que a perda de fotos de família representa para um homem que tem construído um tão ansioso e apaixonado lugar para os laços de sangue e devotado tamanha importância para a noção de deixar um legado e um registro. Este trauma, durante o qual sangue foi derramado, mais uma vez ameaçou o futuro – o roteiro do próximo filme foi roubado – justamente quando este parecia estar em vias de reconstrução. Por outro lado, o evento parece trazer um alívio, ainda que brutal, em relação ao peso do passado num momento em que justamente se deve seguir adiante.

Do início ao fim, Youth Without Youth é assombrado por essas mesmas tensões e contradições, esses paradoxos e essa violência, descendo aos mais profundos abismos, subindo às mais vertiginosas alturas e assumindo a mais selvagem narrativa. Por mais criativo que já fosse o conto de Mircea Eliade no qual ele se baseou, Coppola não se conteve em lhe adicionar largas doses de fantasia narrativa. O diretor foi até a Europa Central, o pólo oposto de Hollywood – mas seu celeiro criativo original, em busca da possibilidade de reinventar a si mesmo, aquele que conhece tudo e realizou tudo, voltando ao nível de um iniciante. Nessa singular atitude, encontramos o orgulho de Fausto, com o desconto da modéstia e da agilidade tática. Esse gesto, o qual – como sempre ocorre com Coppola – é tanto o gesto do artista quanto o gesto do produtor, transforma Youth Without Youth em uma demanda cavaleiresca por uma utopia a qual o cinema não pode exatamente dispensar, não importa o quão envelhecido fique, coisa que Godard chama de “a infância da arte”. Por favor, abram caminho para o cavalo de Dom Quixote, aquele que passa não é um velho louco, mas a figura da quimera humana em um terreno bem sólido.

O que é que Dom Coppola procura? Cinéfilos e especialistas em religião conhecem a parábola das três rosas, que circula pela mitologia, e é um dos temas centrais de Youth Without Youth e da história de Eliade. A flor redundante que permanece como um traço tangível e colorido de um outro mundo invisível, a flor dada pelos anjos ao sonhador que viaja através do céu e do inferno do conhecimento, do terror e do amor, aquela flor que nós chamamos de filme quando é Francis Ford Coppola quem a cultiva e colhe, testemunha em dois mundos, por dois mundos, ao mesmo tempo: o velho e o novo, realidade e o imaginário.

Levantem as luzes!

domingo, março 23, 2008

O Gesto e o Cinema

Helena Weigel numa montagem clássica de Mãe Coragem...
No pesado livro A Imagem-Tempo, o filósofo do cinema Gilles Deleuze estabelece as diferenças entre o “corpo cotidiano” e o “corpo cerimonial”. As atitudes físicas que tomamos vacilam entre esses dois pólos: o instintivo – o espontâneo – e o “litúrgico” – o calculado. O autor também relaciona o enlace e a coordenação das atitudes em si mesmas (independentes de qualquer contexto narrativo) com a noção do gestus, que “efetua uma teatralização (grifo meu) direta dos corpos, freqüentemente bem discreta, já que se faz independentemente de qualquer papel”. O conceito do “gestus” foi criado pelo famoso dramaturgo e pensador do teatro Bertold Brecht, para quem o “gestus” está na essência do teatro, não dizendo respeito à história ou assunto da peça (no texto “Musique et Gestus”, da obra Estudos sobre Teatro).

Deleuze cita um estudo de Roland Barthes sobre o texto de Brecht (“Diderot, Brecht, Eisenstein”, em O Óbvio e o Obtuso), no qual o importante semiologista afirma que o verdadeiro tema crítico da peça Mãe Coragem e seus Filhos é a “demonstração crítica do gesto” da “comerciante que acredita viver da guerra”, a sua “cegueira”. Nessa personagem, percebe-se o desenvolvimento de todo um processo de tornar cerimoniais os gestos mais cotidianos. Deleuze completa: “é o gesto exagerado pelo qual a vendedora verifica o troco”. Lembra-se também do cinema de Eisenstein: “o grafismo excessivo com que o burocrata de A Linha Geral assina a papelada” (nas palavras de Barthes). As artes plásticas estão repletas de gestos que “teatralizam” a vida. Um exemplo pode ser o quadro “O Banqueiro e sua Esposa” (1514), do pintor renascentista flamengo Quentin Massys.

O Banqueiro e sua Mulher

Na própria vida do dia-a-dia, quantas vezes não nos deparamos com aquelas pessoas em posições absolutamente (des)importantes que se agitam com toda a pompa e circunstância (mas com um automatismo quase maquinal) em seus medíocres postos de trabalho? Basta pensar em um certo estereótipo de funcionário público (ou privado). Por isso mesmo, para Brecht, o “gestus” de caráter social é o mais importante dentre todas as outras espécies de gesticulação cerimonial em situações vulgares. No cinema, há muitos outros exemplos. Os cômicos / burlescos são os que me vêem mais imediatamente à cabeça. Nos filmes de Jacques Tati (Meu Tio, Playtime, Trafic, etc), são hilários e revoltantes os gestos ridículos do burguês nas cerimônias cotidianas de abrir eletronicamente a porta da garagem, ligar a parafernália elétrica da cozinha, dirigir seu automóvel, etc.

Em paralelo, são hilários e reconfortantes os gestos desastrados e frustrados do Ms. Hulot (Tati), para quem as máquinas nunca funcionam direito. Em Charles Chaplin também encontramos a mesma razão entre o “gestus” dos leões e o do cordeiro. Em A Busca do Ouro e Vida de Cachorro (só para citar dois casos), temos os gestos soberbos e brutais dos “homens fortes” (que viram foco central em O Grande Ditador) e os gestos puros do inocente: às vezes totalmente banais (como a cena em que o Vagabundo “ajeita” melhor o cãozinho que lhe servirá de travesseiro), outras vezes dotados de um cerimonial profundamente significativo, verdadeiramente humano e singelo (como a famosa “dança” dos pãezinhos).

Gilles Deleuze, discutindo as atitudes do corpo, o cinema, o teatro e a teatralidade do “gestus”, cita o filme O Amor Partido (1984), de Jacques Rivette (diretor francês ligado à nouvelle vague). Melhor do que parafrasear, prefiro reproduzir o trecho inteiro: “As personagens ensaiam uma peça; mas, justamente, o ensaio implica que não atingiram atitudes teatrais que correspondem a seus papéis e à intriga da peça, que as ultrapassa; em compensação, são remetidas a atitudes parateatrais que tomam com relação à peça, a seu papel, umas em relação às outras, e essas atitudes secundárias são mais puras e independentes justamente por não comportarem intriga alguma preexistente, essa só existindo na peça. Vão pois secretar um gestus que não é real nem imaginário, cotidiano nem cerimonial, mas situa-se na fronteira dos dois e, por sua vez, remeterá ao exercício de um sentido verdadeiramente visionário ou alucinatório (...)”.
Galaxy Quest

O trecho acima me fez lembrar imediatamente de um filme, aparentemente bobo, mas na verdade um dos mais criativos do cinema de Hollywood nos anos 90. Trata-se de Heróis Fora de Órbita (“Galaxy Quest”, EUA, 1999, dir.: Dean Parisot). É uma daquelas películas valiosas que passam despercebidas. Com um elenco incrível, do qual se destacam Tim Allen, Sigourney Weaver, Alan Rickman, Tony Shalhoub e Sam Rockwell, a narrativa faz uma genial paródia da mítica série de TV Jornada nas Estrelas (“Star Trek”) e de todos os efeitos psicológicos e sociais que ela (continua) causando. Os protagonistas do filme compõem o elenco meio envelhecido de um famosíssimo seriado do passado (o “Galaxy Quest”), que hoje sobrevivem de participação em convenções de fãs e eventos publicitários, já que ficaram tão estigmatizados pelo papel que nunca mais conseguiram trabalhos bons de verdade e diferenciados.

A atuação que eles tinham no extinto programa de TV é um delicioso exemplo do “gestus” canastrão que faz rirem as platéias de não-fãs. A pompa, a afetação e a falsidade são ridiculamente evidentes. Hoje em dia, a situação é ainda pior: os pobres “atores” são obrigados a repetirem ad infinitum os famosos cacoetes, gestos, posturas corporais e “catch phrases” da série para fãs que quase vão ao orgasmo em testemunhar tais coisas ao vivo nas “convenções”. Os artistas não suportam mais tal situação, mas, fazer o quê? É preciso pagar as contas. Então, eles são abduzidos por extraterrestres que captavam as transmissões de TV, acreditando que são “documentos históricos”, sendo os atores os maiores heróis da galáxia (!). Essa espécie alienígena encontra-se num grande perigo, ameaçada pelo imperialismo sangrento de uma outra espécie, absolutamente cruel.

Assim, os “ingênuos” constroem uma nave espacial de verdade, obedecendo as “especificações” que viram no seriado, e pretendem que os “heróis” tomem seus postos e os ajudem a se libertar do grande mal. Primeiramente, os atores acreditam que se trata apenas de mais um “trabalho” publicitário e continuam a repetir os mesmos gestos de intérpretes, muito sarcasticamente. Mas quando vêem a verdadeira natureza da coisa, querem logicamente pular fora, dizem que não são heróis, apenas atores, e que não querem arriscar a vida por causa desse tremendo mal-entendido. Aí os seus gestos ganham uma outra postura, somente aí eles assumem e admitem de fato sua função profissional, assim como as lógicas diferenças entre a “ficção” e a “realidade”. Pela primeira vez, suas atitudes são espontâneas, revelando todo o leque de características humanas das mais banais.

Contudo, quando a coisa se revela drasticamente séria, com sério perigo de morte para eles próprios e para os seus pobres anfitriões, os atores assumem de fato seu papel “heróico” e mergulham de cabeça na aventura. Na experiência real, seu “gestus” parece muito mais convincente a nós, espectadores, pois nasce da naturalidade da própria vida. Sua dramaticidade deixa de ser um “jogo” teatral para se tornar a expressão inconsciente de pessoas vivendo uma situação-limite. A ficção torna-se muito mais autêntica, pois deixa de ser ficção; e os atores se tornam melhores atores justamente por não estarem mais “atuando”. Como diz Deleuze, suas atitudes serão mais “puras” e “independentes”. Eis o “gestus”, a atitude natural do momento, pois não há mais um roteiro a ser decorado, não há história a ser contada.

O sentido “verdadeiramente visionário” ou “alucinatório” de que fala o autor percorre a maior parte da aventura do filme, tornando-se particularmente evidente no final, quando o “gestus” dos atores-heróis dançará nas fronteiras entre o “cotidiano” e o “cerimonial”, entre o “real” e o “imaginário”, na cena em que eles enfrentam o grande vilão na frente de uma platéia exaltada de fãs da série, que aplaudem, assobiam, gritam e comemoram, durante uma convenção, acreditando que se trata de uma “encenação”. Nesses momentos, as atitudes corporais dos atores tornam-se verdadeira e profundamente cerimoniais, pois são dotadas de um significado muito real e íntimo para eles. Se o cerimonial é, muitas vezes, a exageração do cotidiano até torná-lo automático e falso, em Galaxy Quest acaba ocorrendo o inverso: o cotidiano é que é automático e falso, sendo o cerimonial a expressão da vida singular, significativa, no limite (que é onde ela melhor se revela).

Um padre pode conduzir uma missa transformando a liturgia numa série de cacoetes afetados mas vazios, ou pode rezá-la como se fosse a primeira e única celebração da morte e ressurreição de Cristo. A coisa fica ainda mais complexa se nos lembrarmos (obviamente) de que o filme em si também é uma ficção. Então, a fabulação se desenvolverá em três camadas (universos) simultâneos: os atores (Allen, Weaver, Rickman, etc) que interpretam uma ficção na qual eles são atores (Jason Nesmith, Gwen DeMarco, Alexander Dane, etc) que interpretam uma outra ficção (Comandante Peter Taggert, Tenente Tawny Madison, Dr. Lazarus, etc). Enfim, alguns podem achar meio besta eu ficar discutindo esses altos temas, citando Deleuze, Barthes e Brecht a respeito de uma ficção científica B sub-hollywoodiana. É claro que há filmes muito mais “cabeça” que também tratam dessas coisas (basta ver as produções de David Lynch). Mas cinema é cinema.

sábado, março 22, 2008

Chega de Saudade


Encantador. No site oficial do filme, a diretora Laís Bodanski confessa: “Queria deter o frescor da descoberta. Encantou-me a coragem que estas pessoas têm de experimentar a vida”. Bom trabalho. Poucas vezes o cinema nos presenteia com uma experiência tão viva e tão rica: sentimos exatamente o “frescor da descoberta” e o “experimentar a vida” durante os 92 minutos de projeção em tela, numa sala escura, da experiência alheia captada por uma máquina. É incrível, filmes assim renovam nossa fé na Sétima Arte. Poucas vezes também é tão curta a distância entre a meta do realizador e a obra em si, pronta.

Chega de Saudade (Brasil, 2008) é uma canção – e não só por haver canções dentro do filme, quase que ininterruptamente; é um poema – e não só por haver um poema dentro do filme, declamado por um personagem num momento-chave. Tem-se aqui a realização de um profundo cinema de poesia, no qual todos os elementos estão interligados e confluindo com incrível fluência para um grande efeito (a chave-de-ouro, mas sem qualquer sinal de pretensão) que envolve e embala o espectador. É difícil explicar a experiência, mas ver filmes assim não é como ver a maioria dos filmes. A maioria dos filmes são como contos ou romances. Mas assistir a Chega de Saudade é como ler ou ouvir um poema.

A musicalidade está na própria imagem, nos elementos diegéticos que a compõem, nos enquadramentos e na montagem. Sentimos o calor e o aconchego do ambiente fechado do baile, lotado de pessoas, instalado num prédio antigo. A iluminação multi-colorida e com os diversos efeitos típicos cria uma atmosfera de sonho, de devaneio poético-sensorial, e sobretudo emotivo. É um acontecimento banal, mas ao mesmo tempo não é. A noite de baile é um momento único e definidor na vida da pessoa que o freqüenta. Toda noite de festa possui esse caráter duplo de ser algo tão cotidianamente da vida e do mundo, mas ao mesmo tempo sendo algo maior do que a vida e o mundo.

A festa parece resumir em si passado, presente e futuro, realizações, esperanças e frustrações, encontros e desencontros, vida e morte, todos os tipos de pessoas e todas as formas de relacionamentos humanos e os seus mais sutis matizes fenomenológicos e emocionais. Todos esses elementos podem ser claramente reconhecidos em Chega de Saudade. Aquele salão de baile é um perfeito micro-cosmo, representado com tanta expressividade como raramente se vê no Cinema. Mas não devemos entender “micro-cosmo” aqui como uma “imitação” em escala menor de um mundo que estaria lá fora, no “macro-cosmo”. O cosmo do baile neste filme é o único cosmo existente. Todo o universo está ali dentro e não há nada fora dele.

O filme tem em sua base um belo paradoxo: o banal que é único. O processo de significação vai se desenvolvendo em camadas cada vez mais profundas e genéricas: a partir de um baile da “terceira idade”, discute-se o baile de todas as idades que é a própria vida. E eis que o mundo é um salão (diferentemente – mas não tanto – do que dizia Shakespeare: que “todo o mundo é um palco”). E o melhor de tudo é que Chega de Saudade expressa tudo isso através do uso muito poético da arte cinematográfica e de todos os seus aspectos.

O roteiro; a direção de arte e os figurinos; a interpretação dos atores (principalmente); a fotografia metonímica: predominantemente em primeiros planos de pés que bailam, de mãos que tocam e de olhares que se cruzam, nas dinâmicas associações e dissociações de pessoas, histórias e corações que “habitam” o baile; a montagem que, às vezes, em um único plano (seqüência) passa o olhar da câmera de um grupo a outro de personagens, de um foco a outro, como uma filmagem caseira (de aniversário, de casamento, etc). São esses ricos movimentos, repito, entre os elementos que compõem as imagens, entre a maneira como as imagens são registradas e o modo como elas são montadas umas às outras, que fazem com que o próprio filme em si seja uma dança de baile, uma valsa, um bolero.

Dentre todos, talvez haja um movimento que seja, por si só, o mais expressivo do filme, representando todos os outros movimentos pendulares que compõem a fita, que baila entre o banal e o único, o passado e o presente, o masculino e o feminino, a esperança e a frustração, a vida e a morte, o temporal e o eterno, o pequeno e o grande, o jovem e o velho, enfim, entre o tempo interior (psicológico) e o tempo exterior (físico, cronológico). Trata-se de um simples movimento de câmera. Numa simples panorâmica, junto com uma competente edição de som e ajuste tecnológico de luz, temos um grande efeito de arte do Cinema:

No segundo devaneio do personagem de Leonardo Villar (Álvaro), vemo-lo dançar sozinho e glorioso, enquanto todos assistem e aplaudem entusiasticamente. A própria película, aqui, ganha um tom mais descolorido, quase em preto-e-branco. Quando termina, aclamado, ele vai saindo da pista de dança e a câmera o acompanha numa panorâmica até ultrapassá-lo e ir encontrar o Álvaro “atual” sentado melancolicamente numa mesa, no mezanino ao lado da pista. Na passagem do “passado” ao “presente”, a imagem da fita ganha suas cores naturais e voltamos a ouvir os sons do salão de baila naquele momento.

E sem esquecer a trilha sonora da obra como um todo, sua expressividade e pertinência narrativa. O poema declamado em certo momento do filme resume muito bem o seu espírito, e principalmente uma expressão dita pelo personagem que o declama: “o encanto do momento”. Chega de Saudade não conta uma história ou histórias propriamente ditas. Apenas capta momentos, momentos banais e únicos, efêmeros e eternos a um só tempo, inserindo-se muito bem em toda uma filosofia de Cinema, realizando o ideal de toda uma escola. O filme de Bodanski não é único. Há outras produções com esse caráter e esse poder, principalmente dentre o cinema italiano.

O roteirista Luiz Bolognesi cita Ettore Scola (“O Jantar”, 1998), enquanto a diretora fica com Marcelo Gomes (“Cinema, Aspirina e Urubus”, 2005). Enquanto possuírem grandes referenciais, e souberem aproveitá-los, podemos esperar grandes obras. Filmes que realizam grande entretenimento e arte, despretensiosamente (o que é o melhor). Chega de Saudade já nos surpreenderia se viesse do exterior. Sendo brasileiro, é uma surpresa maior e bem mais agradável. É bom juntarmos com carinho uma parcela bem interessante e diferenciada da produção nacional recente: este filme de Laís Bodanski, A Via-Láctea de Lina Chamie, e Mutum de Sandra Kogut (repare que todos os três pertencem a cineastas mulheres), para fazer uma saudável oposição à tendência “mundo cão” tupiniquim: Tropa de Elite, Baixio das Bestas e afins. Só mesmo o olhar feminino para sensibilizar o nosso Cinema.

sexta-feira, março 21, 2008

Os Pioneiros: Ferdinand Zecca


O francês Ferdinand Zecca (1864-1947) foi descoberto por Charles Pathé, criador e dono da primeira grande indústria produtora de filmes – que dura até hoje. As semelhanças entre o cinema de Zecca e o de Georges Méliès são consideráveis, mas também o são as diferenças. O primeiro cinema industrial (a Star Film de Méliès e a Pathé Frères) dirigia-se quase que exclusivamente às classes populares: o cinema era artigo de feira, os filmes sendo exibidos debaixo de lonas (a “grande virada” só vai acontecer no final da primeira década do século XX, quando a intensa melhoria da qualidade da produção da Pathé, assim como a diversificação dos seus assuntos, chamará a atenção das classes mais altas e cultas; então, o cinema passará a ser exibido nos teatros, nascendo aí o filme de arte).

Nesse contexto, tanto Méliès quanto Zecca empreenderam para a população uma produção cinematográfica em massa. No entanto, enquanto o primeiro era um verdadeiro “homem-orquestra”, exercendo todas as funções do processo, o segundo dividiu os trabalhos, arrumou colaboradores e, com isso, acabou formando uma escola (segundo Sadoul). Zecca conhecia bem o gosto dos feirantes e do público geral a quem atendia. E para eles – diferentemente de Méliès, foi além da mera trucagem cinematográfica, desenvolvendo uma técnica que incluía também um conteúdo (sempre de gosto popular). Pela primeira vez, o cinema torna-se expressão.

O primeiro sucesso do realizador foi História de um Crime (1901). O assunto era o de uma certa exibição em um museu de figuras de cera inaugurada em 1889. Inclusive, a maioria dos quadros do filme (realizado pela produtora de Pathé) correspondia exatamente à montagem do museu. A maior atração deste filme era uma execução de pena de morte, que fez muito sucesso nas feiras até 1910, quando o governo a censurou. Em 1902, Ferdinand Zecca começa a filmar sua mais importante película, A Vida e Paixão de Jesus Cristo, que será finalizada apenas em 1905. A estética desta obra é a mesma dos presépios de natal e dos quadros da paixão em igrejas, todos de inspiração na arte sacra medieval – com pouca e tosca, ou nenhuma perspectiva (pois o que mais importa aqui é a mensagem do conteúdo; é uma arte exclusivamente pragmática e didática a arte devota).

A primeira obra conscientemente representativa / teatral do Cinema já tinha sido uma Paixão, realizada por Louis Lumière em 1897. É curioso o como a arte do cinema no mundo ocidental tenha nascido da mesma maneira que a arte do teatro e da pintura: através da religião cristã. Mais do que enxergar esse fato como um retorno negativo ao medieval, é interessante que o intelectual laico contemporâneo reconheça com fascinação humana a permanência de temas arquetípicos e transcendentais na arte e na cultura. Quanto à contribuição especificamente cinematográfica do filme de Zecca, este promove, ao contrário de Méliès, a movimentação da câmera em desajeitadas panorâmicas que procuram mostrar a totalidade e grandeza dos cenários. A Paixão de Zecca fez um estrondoso sucesso, ganhando uma nova versão em 1907 e abrindo caminho para uma nova etapa no nascimento e no desenvolvimento da Sétima Arte: o Filme de Arte.

Seguem abaixo “A História de um Crime” e um trecho de “A Paixão” – colorizado à mão. Foi lançado no Brasil, pelo selo Magnus Opus (especializado em filmes raros e de vanguarda), um DVD intitulado “Cristo”, contendo “A Vida e Paixão de Jesus Cristo” e “Da Manjedoura à Cruz” (1912), também de Zecca e Pathé.

quinta-feira, março 20, 2008

Os Pioneiros: Muybridge e Marey


O fotógrafo inglês Eadweard J. Muybridge (1830-1904), operando máquinas fotográficas, conseguiu realizar, em 1872, as primeiras filmagens da história, captando o movimento com uma perfeição inédita até então (é preciso lembrar que diversos fotógrafos já haviam tentado variados e desajeitados procedimentos de se “animarem” as fotografias, desde 1851). Radicado em São Francisco – EUA, Muybridge já era um profissional renomado quando foi procurado pelo milionário californiano Leland Stanford, possuidor de cavalos de corrida, que havia feito uma aposta e queria que o fotógrafo o ajudasse a ganhá-la. A aposta envolvia uma questão muito acalorada no debate de então: será que, quando um cavalo está a correr, suas quatro patas chegam a ficar suspensas no ar ao mesmo tempo, por um breve momento que seja? O cientista francês Marey, fascinado pelos movimentos dos animais, dizia que sim.

Para testar a hipótese, Muybridge (graças aos fecundos recursos financeiros do empresário) construiu um complicado dispositivo para tentar captar todos os detalhes do movimento do cavalo: ao longo da pista de corrida foram colocadas vinte e quatro câmaras fotográficas, preparadas por vinte e quatro fotógrafos que instalavam nelas, muito rapidamente e ao sinal de um apito, vinte e quatro placas de emulsão com uma fórmula química especial que ajudava a captar um objeto em movimento; a velocidade do processo era essencial, pois as placas secavam muito rapidamente, deixando de ser sensíveis. Uma vez lançado o cavalo, as fotos eram batidas automaticamente, conforme o animal ia rompendo cordões atravessados na pista ligados a dispositivos elétricos que acionavam as câmaras – invenção que se deve ao engenheiro-chefe da Southern Pacific Railroad, John D. Isaacs.

Levou vários anos para que o processo fosse aperfeiçoado a ponto de dar 100% certo. Em 1877, Muybridge conseguiu resolver o famoso debate da aposta com uma única fotografia, que mostrava o cavalo “voando” no ar. Mas este negativo não sobreviveu. A importante série de fotos, chamada Horse in Motion (“Cavalo em Movimento”) e que se encontra hoje na Universidade de Stanford, foi tirada em 1878.


O fisiologista francês Étienne-Jules Marey (1830-1904) primeiramente estudava o movimento dos corpos orgânicos e a aparelhagem anatômica necessária para realizá-lo. Para tanto, ele inventou e desenvolveu diversos instrumentos de medição precisa. Em 1882, tomando conhecimento dos experimentos de Muybridge, ele resolve se dedicar aos processos fotográficos, contribuindo muito criativamente no campo na fotografia animada, desenvolvendo-a à sua própria maneira. A idéia original de Marey é captar várias fases do movimento em uma única superfície fotográfica (utilizando uma única câmera e um único filme). Para isso, ele primeiro inventou o fuzil fotográfico em 1882 – aperfeiçoando o revólver fotográfico criado em 1876 pelo astrônomo Janssen. A “arma” de Marey era capaz de captar 12 quadros por segundo em uma mesma película.

No mesmo ano, o cientista desenvolveu um procedimento ainda melhor: a cronofotografia de placa fixa, passando a utilizar logo depois placas móveis, graças à adaptação ao aparelho de rolos de película Kodak que eram comercializados então. A câmera e a filmagem de cinema estavam praticamente inventadas, com uma qualidade de 60 imagens por segundo. Em 1888, Marey apresenta aos seus colegas cientistas suas primeiras filmagens em película, que ajudaram a esclarecer muito a anatomia muscular do movimento de animais e seres humanos.

Seguem abaixo alguns filmes de Muybridge e de Marey.

terça-feira, março 18, 2008

Os Pioneiros: Thomas Edison

Salão de Cinetoscópios

Em Pindorama, quando se ouve falar de Thomas Edison, geralmente se lembra do inventor da lâmpada elétrica incandescente. Mas o mais prolífico inventor norte-americano e um dos maiores da era contemporânea (decisivo no rumo tecnológico do século XX) fez muito mais do que isso. Thomas Alva Edison (1847-1931) também é responsável pela criação do gramofone e do cinetoscópio (cujo primeiro protótipo data de 1891, a primeira apresentação pública é de 1893, passando a ser comercializado em 1894, ou seja, ainda antes do cinematógrafo de Lumière), só para citar dois aparelhos dos mais importantes. Também foi o fundador da multinacional G.E. (General Electric), indústria elétrica e eletrônica.

A nós, o que mais interessa aqui é a ligação entre Edison e o que se acabou convencionando chamar de Cinema. Ao contrário do que diz Lisa Simpson, em um episódio da famosa série animada, Thomas Edison não inventou o cinema. Primeiramente, ele desenvolveu a película moderna de 35 mm com quatro pares de perfurações por imagem. Ao mesmo tempo, efetuava a primeira distribuição de eletricidade em larga escala, através da sua General Electric, aperfeiçoava o fonógrafo e chegava finalmente ao cinetoscópio. Esta parafernália é constituída por uma grande caixa que exibe filmes em seu interior, que podem ser vistos por um único e solitário espectador através de uma luneta que sai de dentro do aparelho. É o mais puro voyerismo em ação.

As imagens vistas no cinetoscópio são menores do que as de um cartão postal. Esta tecnologia não foi criada “tabula rasa” por Edison; ele a baseou em velhos zootrópios (aparelhos mecânicos de reprodução em alta velocidade e repetitiva de fotografias ou imagens desenhadas). O primeiro “cineasta” a trabalhar para Edison foi William Kennedy Laurie Dickson, que criou os primeiros filmes, muito próximos de como os entendemos hoje, mas cuja duração não passa de trinta segundos. Nas palavras do historiador Georges Sadoul: “Dançarinos, acrobatas, ginastas, trapezistas, cães saltadores, gatos amestrados, boxistas, lutadores, pessoas bebendo, dentistas, barbeiros, todos os assuntos clássicos do zootrópio foram retomados por Dickson. (...) Nas fitas de zootrópio, há acessórios, mas não cenografia. O mesmo acontece com os filmes de Dickson-Edison, quase todos realizados no interior do primeiro estúdio chamado Black Maria. Silhuetas agitam-se sobre um fundo preto e são geralmente tão pouco humanas quanto simples marionetes”.

No entanto, tal forma de “arte” acabou se desenvolvendo por outros caminhos. Em filmes posteriores, Dickson passou a empregar a técnica de filmagem em primeiro plano e em plano americano, revelando claramente que se vêem pessoas de verdade nos filmes, e não toscas animações. Mais tarde, o realizador utilizará artistas (músicos, atores) nos filmes, elaborando uma cenografia mais complexa, inspirada no teatro e no music-hall, e dando início ao star system do cinema, contribuindo também para a publicidade do cinetoscópio. Quais são os maiores filmes do cinetoscópio dirigidos por Dickson? Chamo novamente Sadoul: “Em Salvamento por um bombeiro, uma escada sobre um fundo preto e a fumaça que envolve a cena bastam para dar vida a um ambiente. O mesmo acontece quando aumentam o número de móveis e a figuração em Dr. Cotton anestesia com gás e extrai um dente (primeira atualidade reconstituída), e nas lutas de boxe em que os espectadores encobrem o fundo preto. A barbearia nova (“The Barber Shop”, que está na coletânea abaixo, tirada do Youtube) e O novo bar constituem verdadeiros quadros de gênero e comportam quase uma cenografia. Esses filmes constituíram os maiores êxitos do cinetoscópio.

Após a saída de Dickson, entra para o Black Maria um fotógrafo profissional chamado Edmund Kuhn, que dirigiu para o cinetoscópio dois filmes famosos: “A morte de Maria Stuart, no qual, diante de numerosos figurantes, o carrasco decapita a rainha e apresenta ao público a cabeça decepada, e O beijo de May Irvin e John C. Rice (que faz parte da coletânea abaixo), que filmava em primeiro plano um episódio de uma peça de êxito. O Beijo não era a primeira vez em que o primeiro plano era exibido no cinema. Mas foi o primeiro a obter um enorme êxito. O seu erotismo ingênuo anunciava a conclusão clássica de mil outros filmes com um final feliz”. Georges Sadoul, História do Cinema Mundial

A partir do momento em que o invento de Edison chegou ao mercado (1894), o próximo desafio passou a ser conseguir exibir as imagens em movimento sobre uma tela grande que pudesse ser vista livremente por várias pessoas ao mesmo tempo. O cinematógrafo de Lumière (que também era aparelho de projeção) foi o vencedor, em 1895. Mas não foi imediatamente comercializado, dando espaço para que Edison inventasse e logo difundisse em 1896 o seu vitascópio. No entanto, assim que a máquina de Lumière chegou aos EUA, sua qualidade e praticidade superiores acabaram por sobrepujar o legado de Edison.

Abaixo, temos alguns dos filmes de cinetoscópio que podem ser encontrados no Youtube: uma antologia de curtas produzidos entre 1894 e 1896 e o primeiro filme experimental do aparelho (“Dickson Greeting”), realizado em 1891.

segunda-feira, março 17, 2008

O Banheiro do Papa


A câmera acompanha, numa panorâmica bem próxima, a sombra baixa de uma bicicleta em movimento veloz, durante um tempo considerável. Então, ela é subitamente ultrapassada por uma motocicleta (da qual somente ouvimos o ruído violento do motor, contrastando com o som fluido das correntes da bicicleta), que quase a derruba no chão. Esta cena, que abre O Banheiro do Papa (“El Baño del Papa”, Uruguai / Brasil / França, 2007, dir.: Enrique Fernández e César Charlone), já resume as melhores qualidades desta película, muito bem cinematografada (trabalho de Charlone, parceirão de Fernando Meireles). É claro que o estilo “modernoso” do diretor de fotografia de Cidade de Deus é irritante às vezes, pois parece ser usado indiscriminadamente para mostrar qualquer assunto em qualquer momento – mas essas são coisas dos tempos “mudernos” em audiovisual. Para o assunto deste filme, eu particularmente preferiria a câmera sóbria do cinemão clássico mesmo (principalmente o italiano).

De qualquer modo, as boas realizações de O Banheiro do Papa encontram-se mais nos aspectos visuais do filme, incluindo aí o tom carinhoso com que a câmera acompanha os personagens em seu cotidiano; nestes momentos, também o roteiro cai muito bem, os diálogos são humanos, naturais, simpáticos e cheios de graça. Mas quando se chega no drama, nos acontecimentos mais fortes e trágicos da vida, e nas atitudes dos personagens em relação a eles e em relação uns aos outros, o filme patina. Vão se acumulando no roteiro muitos aspectos de personagens diferentes, de acontecimentos que vão se encadeando e se sucedendo sem a devida atenção, sem a parada necessária para a melhor reflexão e o melhor efeito de emoção (catártica) no espectador. Ou seja, sem o devido aprofundamento. Parece que o cinema contemporâneo não tem mais paciência para contar uma história, paciência que só encontramos nos mais velhinhos, gente do naipe de Clint Eastwood...

N’O Banheiro do Papa, coloca-se muita coisa para dizer e discutir em pouco tempo de filme (coisas não só das personagens, mas de todo o “contexto” social, político e histórico em que vivem). Entre a metade final e o último terço da história, a “sarabanda” da narrativa fica realmente cansativa para o espectador. Assim como a velha série Matrix (1999-2003), a estréia de Charlone na direção promete muito, pretende muito, mas acaba ficando no meio do caminho. Inconsistência que é perfeitamente compreensível numa obra de estréia; por isso, o tom aqui não é o de desmerecer o filme, mas apontar as suas vitórias assim como os seus fracassos, como aprendizado para as próximas tentativas. Enfim, O Banheiro do Papa acaba pro tropeçar nas próprias pernas. O filme se desequilibra: no caldeirão de coisas a serem acrescentadas e misturadas para “enriquecer” a trama (e os personagens), algumas delas – realmente importantes – passam com um tratamento muito sumário, ao passo que uma exagerada ênfase é colocada de modo excessivamente deslocado em outras coisas, em outros momentos.

Os momentos cômicos, não-sérios do filme são bons; são os momentos realmente humanos e artísticos. Mas o mesmo já não se pode afirmar dos momentos dramáticos, os momentos “sérios” onde entrará a “questão” social, política, econômica, etc. Nestes últimos, acaba transparecendo muito o discurso de um diretor e de um roteirista (que pertencem a uma outra condição social, é claro) que querem “documentar”, registrar e denunciar o sofrimento daqueles “pobres diabos”. Há momentos em que o filme simplesmente se transforma em fotografias estáticas (ou quase) daqueles personagens populares frustrados e cansados, lembrando bastante a exploração pseudo-artística da miséria nas fotografias de Sebastião Salgado, cheia de “hype” e de oportunismo “marketeiro”. Coisa fina para as galerias de arte, para os “connoisseurs” e para as madames pretensamente preocupadas. Ou para os cinéfilos das salas de cinema com nomes de bancos. N’O Banheiro..., pesa mais o profissionalismo do que a arte. É um modelo, uma cartilha para as faculdades de comunicação “audiovisual”.

Valeu a tentativa (valeu mesmo). Mas o filme desaba sobre o peso e o desajuste do centro de gravidade da sua própria ambição. Seria recomendável os diretores estudarem mais e melhor os filmes italianos dos anos 40 e 50 (que não são o único referencial possível aqui, é lógico). O passo do andamento da película parece meio indeciso, desajeitado e nem um pouco gracioso. Repito: em relação a muitos dos elementos do roteiro, O Banheiro do Papa vale mais por suas intenções (assim como Sangue Negro). Mas querer não é poder, infelizmente. Ainda mais quando se quer muito. O filme de Charlone e Fernández não vai muito além de um potencial latente, uma bela e significativa premissa, uma possibilidade. Como diz Heidegger, citado por Gilles Deleuze em A Imagem-Tempo: “O homem sabe pensar na medida em que tem a possibilidade de pensar, mas esse possível ainda não garante que sejamos capazes de pensar”. Acredito que o artista talentoso acabará por aprender a realizar obras de fato “pensantes”.

domingo, março 16, 2008

Os Pioneiros: Louis Lumière


Aproveitando a via aberta pela última postagem, passo agora a exibir (na postagem abaixo) e a comentar no Sombras Elétricas os documentos mais pioneiros e valiosos do Cinema. As primeiras utilizações do cinematógrafo (e de aparelhos até anteriores a ele), os primeiros “short films” dos inventores e primeiros mestres da Sétima Arte, numa época em que nem se tratava de arte propriamente dita... Vale para esses filmes a mesma idéia que coloquei a respeito de The Great Train Robbery: o assombro e a fascinação pela mágica das imagens em movimento vistas pela primeira vez numa reprodução mecânica.

Começo com alguns dos primeiros filmes dos irmãos Louis e Auguste Lumière, inventores do cinematógrafo. São eles:

1. La sortie des usines Lumière (1895)
“O primeiro filme de Lumière é quase uma fita publicitária: foi projetado durante uma conferência sobre o desenvolvimento da indústria fotográfica na França. As operárias, com suas saias “boca de sino” e chapéus de plumas, os operários empurrando suas bicicletas, conferem hoje a esse simples desfile um encanto ingênuo. Depois dos empregados passavam os patrões, numa vitória puxada por dois cavalos. Por fim, o porteiro fechava as portas.” Georges Sadoul, História do Cinema Mundial

2. Le débarquement du congrès de photographie à Lyon (1895)
“Louis Lumière foi o primeiro cinegrafista de atualidades ao filmar, em junho de 1895, os membros do Congresso de Fotografia descendo de um barco em Neuville-sur-Saône. O filme foi projetado aos mesmos congressistas que nele aparecem 24 horas mais tarde, assim como um colóquio entre o astrônomo Janssen e o Sr. Lagrange, prefeito de Neuville. Durante a projeção, Lagrange, escondido atrás da tela, repetiu suas palavras. Primeira e ingênua tentativa de cinema falado.” Georges Sadoul, História do Cinema Mundial

3. Repas de bébé (1895)
“A bonomia domina neste filme, no qual o pai, em mangas de camisa (Auguste Lumière), e a mãe, vestindo uma bonita blusa de seda listrada, admiram com ternura os gestos e as caretas de um bebê que come mingau enquanto agita um biscoito. No primeiro plano, a baixela de prato do café e as garrafas de licor estão sobre uma bandeja. A cena é tratada em plano americano para que o espectador possa apreciar as expressões simples e naturais dos três intérpretes.” Georges Sadoul, História do Cinema Mundial

4. L’arroseur arrosée (1895)
“Os dois filmes de Louis Lumière célebres e imitados, L’Arrivée d’un Train e L’Arroseur Arrosée, continham em germe a possibilidade de importantes desenvolvimentos ulteriores. (...)

L’Arroseur Arrosée não tem as qualidades técnicas de L’Arrivée d’un Train. Mas seu argumento assegurou-lhe o êxito. A história é insignificante: um garotinho põe o pé na mangueira de borracha, provoca a inquietação do jardineiro e quando este vai examinar a agulheta, lança-lhe um jato de água em cheio no rosto. O assunto já fora tratado pelos caricaturistas, cujas imagens haviam sem dúvida inspirado ao mais jovem irmão Lumière, de dez anos de idade, a idéia de uma travessura que sugeriu ao irmão mais velho um argumento. A realização técnica não é muito boa: fotografia acinzentada, enquadramento medíocre, paisagem natural com folhagem excessiva e por isso confusa. Mas o filme triunfou pelo seu famoso “gag”, prenunciado em dois filmes Edison pela pimenteira que um menino agita sob o nariz de Fred Ott. O êxito da primeira narração através de uma fita abriu caminho para a arte do filme.” Georges Sadoul, História do Cinema Mundial

5. Partie d’ecarté (1895)
“A série desses filmes (vários quadros anedóticos do cotidiano, dentre os quais também se inclui Repas de bébé – nota minha) é, ao mesmo tempo, um álbum de família e um documentário social não-intencional sobre uma família francesa rica do fim do século XIX. Lumière apresenta o quadro de um sólido êxito na vida e os seus espectadores se vêem na tela tais como são ou desejariam ser.” Georges Sadoul, História do Cinema Mundial

6. L’arrivée d’un train à lá ciotat (1895)
“A locomotiva vinha do fundo da tela e avançava sobre os espectadores, que se assustavam, temendo ser esmagados. Identificavam assim a sua visão à da câmera: esta tornava-se pela primeira vez uma personagem do drama.

Nesse filme, Louis Lumière utilizara todos os recursos de uma objetiva de grande profundidade de campo. Vêem-se pois em primeiro lugar a estação vazia (plano de conjunto) e um trabalhador que passa pela plataforma com um carrinho. Depois, aparece no horizonte um ponto preto que aumenta rapidamente; logo a locomotiva ocupa quase toda a tela, avança contra o espectador. Os vagões param ao longo da plataforma. Numerosos viajantes aproximam-se e, entre eles, a mãe dos Lumière, vestindo um mantelete escocês, acompanhada por dois de seus netos. Abrem-se as portinholas. Os passageiros descem ou sobem. Entre eles, encontram-se os dois voluntários “mocinhos” do filme: um jovem camponês provençal, com um cajado na mão, e uma moça muito jovem e bonita, toda de branco. Essa ingênua hesita com natural timidez ao perceber a câmera e a ultrapassa para subir no vagão. O camponês e a moça foram vistos, ambos, em primeiríssimo plano, com perfeita nitidez.

Toda a série de tomadas atualmente empregadas no cinema foi na verdade utilizada em L’Arrivée d’un Train, desde o plano de conjunto do trem que surge no horizonte até o primeiro plano. Esses planos não são, porém, separados, decupados, e sim ligados por uma espécie de “travelling” invertido. A câmera não se desloca, os objetos ou personagens dela se aproximam ou se afastam continuamente. E essa perpétua variação do ponto de vista permite obter do filme toda uma série de imagens tão diferentes quanto os planos sucessivos de uma montagem moderna.” Georges Sadoul, História do Cinema Mundial

7. Démolition d’un mur (1896)
“Desde janeiro de 1896, no “Grand Café”, projetava-se este filme às avessas. Por um processo já empregado nos zootrópios (máquina primitiva de animação de imagens), a parede parecia reconstituir-se bruscamente e erguer-se de uma nuvem de poeira.” Georges Sadoul, História do Cinema Mundial

A fascinação do cinema-verdade, o poder da fotogenia:
1. O grande volume de pessoas saindo da fábrica, enquanto um cão (bem grande) passa algumas vezes pela porta, olha para dentro e para as pessoas e se vai. Surpresa: uma carruagem (bem grande também) que de repente aparece a sair pelo portão da fábrica, no meio de todas aquelas pessoas.
2. As pessoas que vão saindo do barco e espontaneamente olhando para a câmera enquanto passam, curiosamente (mas não muito).
3. O “regador regado”, que é a primeira narrativa cinematográfica.
4. O trem que chega à estação em primeiro plano: é lendária a reação de pessoas da platéia durante essa primeira exibição: gritos e tentativas de fugir e se proteger do trem que “sairia” da tela para “atropelá-las.
5. A demolição do muro: toda a beleza fotogênica do mundo captado pela câmera, a poeira do muro caído sob uma forte luz solar; as primeiras experimentações com os “efeitos-especiais”: a projeção de trás para frente, realizando pela primeira vez na história um velho sonho humano: o retorno ao passado. Tais características transformadoras da realidade, de que é dotado o cinematógrafo, inspirou várias reflexões filosóficas altamente apaixonadas dos primeiros teóricos do Cinema.

A história das tentativas de reprodução de imagens em movimento é a história de uma corrida que envolveu vários inventores com as suas excêntricas parafernálias e métodos para lá de criativos, desde o começo do século XIX. Em futuras postagens eu falarei sobre alguns deles (como Muybridge, Reynaud e Edison) e mostrarei suas obras. Mas o fato é que, dentre todos, nenhum teve tanto sucesso quanto Auguste e Louis Lumière, que obtiveram o maior êxito com a primeira exibição pública do seu Cinematógrafo Lumière em 28 de dezembro de 1895, no “Grand Café” do “Boulevard des Capucines” em Paris.

Os irmãos, junto com o pai, Antoine Lumière, possuíam uma fábrica de produtos fotográficos em Lyon. Louis primeiro construiu um cronofotógrafo (aparelho que tirava várias fotografias em alta velocidade de um objeto em movimento, e as exibia em seqüência veloz, criando a impressão de movimento), cuja invenção cabe ao fisiologista francês Etienne Jules Marey em 1882. então, passou a desenvolver o cinematógrafo, que tinha a vantagem de ser ao mesmo tempo câmera, projetor e copiador. De acordo com Georges Sadoul, a perfeição técnica do aparelho e a novidade dos temas filmados garantiram a vitória de Lumière sobre os seus concorrentes (principalmente o norte-americano Thomas Edison).

Muitos fotógrafos e cinegrafistas, que aprenderam e trabalharam com Louis Lumière, espalharam-se pelo mundo difundindo o seu equipamento, que dominou a cena em toda parte, consolidando e convencionando os termos cinematógrafo, cinematografia, cinema, cine, etc. As reportagens, filmes de viagens e de atualidades, documentários, filmagens espontâneas em ambientes exteriores são os grandes gêneros que podem ser atribuídos a Lumière e seus seguidores. Louis Lumière jamais se interessou pelo teatro: jamais organizou qualquer encenação, jamais utilizou atores. Seus filmes são povoados por parentes, amigos e empregados. No entanto, quase dois anos mais tarde, o público começou a se desinteressar pelo cinematógrafo, que, no modelo da escola de Lumière, não oferecia maiores possibilidades criativas. A maravilha da reconstituição da realidade já tinha passado. Era preciso ir além do real, desbravar as sendas da fantasia. Louis Lumière chegou a declarar que o cinematógrafo era uma invenção sem futuro. Mas eis que aparece Georges Méliès...

sábado, março 15, 2008

O Grande Assalto ao Trem


The Great Train Robbery (“O Grande Assalto ao Trem”) é uma daquelas películas fundadoras do Cinema e da sua mitologia. Dirigida por Edwin S. Porter – antigo operador de câmera dos estúdios de Thomas Edison – em 1903, é o primeiro western da Sétima Arte. O filme utiliza algumas técnicas pioneiras da arte cinematográfica, mas não é o criador de nenhuma delas, como alguns dizem. A obra de Porter também não pode ser considerada o primeiro filme narrativo: segundo o historiador Georges Sadoul, este privilégio cabe a Georges Méliès; enquanto que o privilégio pela invenção da montagem cabe aos realizadores ingleses, tudo acontecendo naqueles curtos anos (1895-1903) que definiram o nascimento e grande parte do rumo que o cinematógrafo viria assumir.

Em The Great Train Robbery vê-se, por exemplo, a montagem paralela (dois núcleos de ação que se alternam, transcorrendo em lugares diferentes, mas ao mesmo tempo) e a elipse temporal (saltos narrativos que “deixam” de mostrar certos acontecimentos pressupostos). Os dados realmente novos nesta produção são a filmagem em locação e o tema do “far-west” (que era, na verdade, bastante contemporâneo à época; ou seja, temos aqui um faroeste feito durante a própria época do faroeste). De qualquer modo, no que inventou e no que utilizou de já inventado, o filme de Porter irá influenciar grande parte do desenvolvimento do Cinema norte-americano, a começar por D. W. Griffith. Baseado numa peça teatral popular de 1896, foi um grande sucesso comercial, nos seus 12 minutos de duração, ajudando a revelar e consolidar o potencial de exploração comercial do invento disputado entre Lumière e Edison.

Agora, uma palavrinha de experiência. É difícil assistir e apreciar adequadamente essas obras pioneiras do Cinema quando as suas técnicas – tanto as mais elementares quanto as mais sofisticadas – já foram assimiladas e processadas consciente e inconscientemente por nós, público deste século XXI. Em vista deste problema, para que percebamos de modo, digamos, fresco o como que The Great Train Robbery foi um filme inovador, é interessante tentarmos ao máximo vê-lo com os olhos das platéias de 1903, com aquele assombro e aquela fascinação de quem estava começando a vislumbrar as maravilhas das “imagens em movimento”. Somente assim entenderemos o real e profundo sentido da imagem final da fita: um bandido que descarrega seu revólver em direção à câmera. Até hoje, uma imagem assim causa impacto: vide o final de Tropa de Elite. Que medo!

quinta-feira, março 13, 2008

Sicko


Viva o SUS!

A julgar pela retórica de Michael Moore, devemos mais é nos orgulhar do nosso combalido Sistema Único de Saúde. É realmente incrível que o único país do hemisfério ocidental que não possua um sistema público de saúde (por pior que fosse) seja os EUA. De qualquer modo, Sicko (EUA, 2007) é mais uma fita típica do diretor. Sua visão de mundo e seus argumentos são, em alguns momentos, constrangedoramente ingênuos; mas em outros, são sadiamente ingênuos. Tudo tem dois lados, não? Não obstante, no meio de tudo, Moore consegue atingir umas “sacadas” retóricas de primeira linha, demonstrando um pensamento independente, pronto a criticar os excessos tanto de gregos quanto de troianos. É claro que há muitos dados e fatos apresentados em relação aos quais – se o expectador não pesquisá-los e conhecê-los independentemente – só nos sobra a mais pura crença.

Por isso, vamos apenas discutir aqui dois méritos cinematográficos de “Sicko”. No primeiro deles, temos Michael Moore entrevistando um francês que ganhara, por ocasião da recuperação de um câncer anos atrás, um longo período de licença no ensolarado sul daquele país. Quando o ex-doente menciona “sul da França”, o filme faz um corte e passa a mostrar panorâmicas da bela Riviera Francesa, ao som daquela típica melodia de acordeão na trilha sonora. Mas, menos de 5 segundos depois, ouvimos a voz de Moore perguntar: “Peraí, foram três meses de licença pagos pelo governo?”, junto com um som do arranhar de uma agulha de toca-discos a interromper a bucólica melodia. Mais um corte, e a cena volta à entrevista, feita no que parece ser o apartamento do entrevistado. O rapaz explica-se melhor e acaba por voltar ao ponto do discurso no qual havia sido interrompido. Então, um outro corte e finalmente o filme mostra e fala do sul da França e da vida do convalescente por lá.

Quer dizer, é como se o discurso audiovisual – realizado na montagem (visual e sonora) – acompanhasse intimamente o discurso verbal e, por que não?, o próprio fluxo das imagens conscientes das “personagens” envolvidas. Desse modo, qualquer interrupção, ruptura, retornos ou avanços que atravancam a “edição” linear do discurso verbal tivessem os seus paralelos no discurso audiovisual. Um segundo momento interessante de “Sicko” é a imagem do próprio Moore subindo as escadarias rumo à Casa Branca carregando um cesto de roupa suja, para pedir ao governo que “do his laundry” (esta cena tem um significado muito retórico, pois está relacionada a uma das entrevistas que o diretor faz no filme). Ambas as cenas, junto de várias outras, fazem o tom leve, bonachão e sarcástico que é a marca registrada de Michael Moore. Creio que estes elementos são o seu maior – e menos questionável – valor, também presentes em Farenheit 9/11 (2004) e Tiros em Columbine (2002).

terça-feira, março 11, 2008

10.000 a.C.


Quem for ao cinema para ver 10.000 a. C. (EUA, 2007, dir.: Roland Emmerich), esperando encontrar algo entre 2001, Uma Odisséia no Espaço (“2001, A Space Odissey”, EUA, 1968, dir.: Stanley Kubrick) e A Guerra do Fogo (“La Guerre du Feu”, Canadá / França / EUA, 1981, dir.: Jean-Jacques Annaud), vai quebrar a cara. Durante muito tempo, o cinema de Hollywood nos acostumou com épicos digamos cerebrais. Epopéias construídas em cima de pesquisa e orientação quase didáticas, epopéias preocupadas com o registro cinematográfico de uma era e de seus acontecimentos que infelizmente não dispunham – no calor do seu momento – da máquina inventada por Lumière, máquina diabólica que veio para se tornar a maior testemunha da História.

Em tais filmes (que pipocavam principalmente nos anos 50 e 60), exalava por todos os seus poros uma maravilhosa sensação de fascinação pelo passado. E pelo passado em si só, visto por nossos olhos contemporâneos como o grande outro, modulando desinteressadamente o seu canto de sereia de mito e de mistério. O abismo do passado (ainda mais do passado distante) é quase como uma divindade caprichosa e indiferente; ele não está nem aí para a nossa tola curiosidade, nem para os medos e esperanças do homem de sua época. O homem, este “bicho da terra tão pequeno” (no dizer do poeta Camões) que tem contra si todos os elementos deste mundo, não possuindo qualquer possibilidade de abrigo. Pois bem, toda esta dimensão do fascínio pela grande aventura humana (é a palavra que melhor a define) passa longe, bem longe de 10.000 a. C.

Roland Emmerich não chega nem aos pés da classe, da inteligência e do coração de um William Wyler (Ben-Hur, 1959), de um Joseph L. Mankiewicz (Cleópatra, 1963), de um Stanley Kubrick (Spartacus, 1960), de um Anthony Mann (El Cid, 1961; A Queda do Império Romano, 1964). E não é o único. Ridley Scott, que também tem lá a sua tara pelos épicos (Gladiador, 1999; Cruzada, 2005), precisa voltar para a escola do mesmo modo. O que é que acontece? De duas, uma: 1. ou Emmerich de fato estuda e pesquisa a tradição cinematográfica (e também literária, científica, filosófica e cultural) relativa ao tema que deseja filmar (o que se recomenda a qualquer aspirante a “artista”);

2. ou o diretor de Godzilla (1998) crê de tal maneira em sua própria genialidade (ou descrê absolutamente em qualquer tradição, o que seria imbecil da mesma forma), que senta para escrever o seu filme como se fosse este o primeiro da história, partindo completamente do zero, da tabula rasa (lembremos que ele também co-assina o roteiro de 10.000 a. C.). Qualquer que seja a escolha, o diretor tropeça e cai muito, muito aquém da sua meta. Nós até podemos entender se algum jovem com pouca bagagem cinematográfica adorar 10.000 a. C. Mas se dermos uns 4 ou 5 filmes antigos mais ou menos do mesmo gênero para esse mesmo jovem assistir, a título de comparação, ele verá com toda a certeza o como que a obra de Roland Emmerich empalidece perto do que é o verdadeiro tesouro.

E é uma pena, pois eu até tinha gostado de O Dia Depois de Amanhã (2004). Emmerich, assim como outros diretores atuais de “blockbusters” (o nome de Michael Bay é o que sempre vem à mente em primeiro lugar), parece seguir radicalmente à risca uma certa lógica do audiovisual contemporâneo, que pode ser resumida como uma extrema subestimação do público espectador: o filme não pode ser longo demais (o que, para eles, significa que deva ter menos de duas horas), com um conteúdo complicado ou aprofundado demais (ou seja, algo que vá além do nível “Wikipédia”), com um ritmo lento demais (a cada cinco minutos deve acontecer algo “bombástico”, para prender o espectador na cadeira, para impedi-lo de dormir; o filme tem que ser “dinâmico”, a câmera tem que estar em constante e veloz movimento, a montagem precisa ser de “vídeo-clipe”, etc).

Emmerich é da geração da passagem entre MTV e Internet (anos 90 / 00), ou seja, a geração da velocidade da informação, a geração das crianças hiper-ativas e dos adolescentes com transtorno de déficit de atenção. Assim, talvez Roland Emmerich nem seja um cineasta ruim, mas apenas um (sub) produto de sua época. É até engraçado perceber o como que os diretores do “cinemão” de tempos atrás já não pertencem à nossa época atual: homens como Steven Spielberg e George Lucas já viraram dinossauros; comparem-se os seus filmes mais recentes com os de seus “herdeiros” e se verá o quanto possuem de uma classe, de uma bagagem (cinematográfica e cultural) e de uma série de preocupações e valores que já não existem mais. A mesma coisa vale para Peter Jackson, o único que busca – e consegue – dialogar com o cinema mais clássico.

Imagine-se toda a fascinação pela imagem do homem primitivo na paisagem do final da Era do Gelo, imagem que poderia fazer gente como Stanley Kubrick ter verdadeiros orgasmos cinematográficos, fotogênicos. Pois Emmerich trata essa imagem como aqueles turistas de final de semana que jogam latinha de cerveja na trilha da cachoeira. Para completar e evidenciar o caráter de alguns planos de 10.000 a. C., só falta um Linkin’ Park na trilha sonora... Enfim, o diretor está (muito) mais interessado na trama folhetinesca dos personagens (nem vou começar a discutir isto aqui sob um ponto de vista antropológico). O que, em princípio, nem é algo ruim: lembremos que a primeira grande superprodução épica do cinema envolvia uma história de novela das 8: trata-se do grande e clássico Cabiria (Itália, 1914, dir.: Giovanni Pastrone).

No entanto, logo se nota que Cabiria possui um roteiro muito bem arquitetado, coerente, significativo, profundo e eficiente. O melodrama de Cabiria funciona. O de 10.000 a. C. não. O roteiro deste filme é incrivelmente “meia-boca”, oportunista, incoerente e gratuito. Só pode agradar a crianças que não tenham visto sequer o longa de animação Irmão Urso (EUA, 2003, dir.: Aaron Blaise e Robert Walker). Retomando o que eu dizia no começo, para finalizar: se o espectador esperar de 10.000 a. C. alguma espécie de Kubrick da vida, sairá terrivelmente frustrado. Mas, se entrar na sala de cinema com Irmão Urso em mente, é possível que desgoste menos do filme. Pois a película de Emmerich não é um épico cerebral (e nem precisaria ser), mas um melodrama histórico. Não obstante, mesmo em relação a este último gênero, a fita é fraca. Irmão Urso é muito melhor.

domingo, março 09, 2008

Artigo da Cahiers du Cinema (março 2008)


Como não há edição no nosso bom Português da grande Cahiers du Cinema, aqui venho eu novamente para piratear parte do seu conteúdo, mal traduzido. O artigo abaixo saiu na mais recente edição da revista (número 632, março de 2008) e está disponível gratuitamente on-line (em francês, é claro) no site oficial.

O Cinema Americano no momento de Sangue Negro: Desejos de Grandiosidade

Por Stéphane Delorme

1. No momento de sua entrevista para os Cahiers (n. 628), Coppola constatou que os cineastas americanos tinham todos passado às técnicas do vídeo e do digital, todos exceto um: Paul Thomas Anderson. A imagem de Daniel Plainview (Daniel Day Lewis), cavando solitariamente com uma picareta o seu poço no meio do deserto, em Sangue Negro, seria por um acaso a imagem onírica que P. T. A. teria a respeito de um pioneiro do cinema, estendendo a película entre os dedos? Quem teria acreditado, tendo em vista os arabescos vãos pós Robert Altman de seus filmes anteriores, que este jovem cineasta (nascido em 1970) encarnaria hoje a figura do pioneiro, desbravando e perfurando num único gesto o Cinema e a América, como os “grandes” cineastas do século passado? O que surpreende tanto em Sangue Negro é a ambição de rivalizar com os mestres e de fazer um cinema não-datado, eterno e universal: na falta de um cinema que possa ser taxado de “pós” alguma coisa – para o nosso alívio – fica-se com o sentimento de um cinema que estaria “por detrás” de tudo, mas como um monumento isolado, uma estrela cuja solidão tem muito a ver com a arrogância narcisista dos seus heróis. Mas não se trata, na verdade, de “estar na base de tudo”, mas bem de rivalizar com Coppola, Kubrick ou Welles; P. T. A. deseja provar a sua maturidade. De modo bizarro, o cinema americano contemporâneo não nos tem habituado a uma tamanha ambição. A sensação é de que, se deixassem de lado o gênero e a cinefilia, os cineastas entrariam em pânico. A História e a Metafísica – que são reduzidas em Hollywood à América e ao Mal – são reservadas como as caças que se guardam aos grandes anciãos (Gangues de Nova York e O Aviador, de Scorsese, e O Novo Mundo de Malick). O espaço para outros jogos parece singularmente retraído.

2. Há dois anos atrás (Cahiers 614), uma constatação deprimente sobre o cinema americano revelou o que parece ser o fracasso da atual geração: os mesmos nomes que surgiram na cena cinematográfica durante os anos 1960 e 1970 continuam a dominá-la. Dois livros traduzidos recentemente tentam dar à geração dos anos 1990 a sua dignidade: Sexe, mensonges et Hollywood, de Peter Biskind; e Les Six Samouraïs: Hollywood somnolait, ils l’ont réveillé!, de Sharon Waxman. Os seis samurais não precisam ser lembrados: Steven Soderbergh, David Fincher, Quentin Tarantino, P. T. Anderson, Spike Jonze, David O. Russell. Estes cineastas, ditos “revolucionários”, somente o são por causa do seu impacto econômico e por sua passagem rápida da independência ao sistema. O ponto comum deles, mais ou menos oportunista, é uma certa idéia de juventude: dinamismo, ironia, desenvoltura, cultura “junk”, com uma tendência ao vulgar, ao chocante, ao violento e ao escatológico (Tarantino, Fincher, Anderson); ou ao extravagante, esquisito, disfuncional (Jonze, Russell; melhor seria juntar aí um outro Anderson, o Wes). Um talento real para se apropriar do contemporâneo (O Clube da Luta), um refrescante imediatismo. Mas a sua amnésia está logo atrás da porta: pouco se volta à História ou à história das formas. As astúcias da “mise en scène”, em sua maioria, não passam de blefe: é o caso dos cineastas que os Cahiers, assim como outras revistas, têm denegrido – à exceção do Tarantino a partir de Jackie Brown. Na pior das hipóteses, eles podem ser classificados de pequenos maliciosos; na melhor, de executores brilhantes – coisa que é sempre um tanto quanto medíocre. Um cinema lúdico, típico da criança mimada (Spike Jonze) e do cinéfilo frívolo. É surpreendente que se tente fazer, nos EUA, uma nova “Nova Hollywood”, tanto que são incompatíveis as ambições estéticas.

Os dois últimos anos nos mostraram uma espécie de drenagem, como se o pastiche tivesse se tornado o reflexo maior da nossa geração. O tão aguardado filme de Todd Haynes sobre Bob Dylan mostrou-se decepcionante: este cineasta, certamente o mais talentoso da primeira leva de Sundance, contenta-se com uma cópia servil de Don’t Look Back (documentário sobre Dylan filmado em 1967) e de Oito e Meio. Será que é forçoso duplicar a estética dos anos 60 para situar um filme nos anos 60? Questão que poderia ser colocada a Soderbergh em relação aos anos 40 no seu inapto O Segredo de Berlim, e também ao seu pupilo George Clooney com os anos 50 do seu Boa Noite, e Boa Sorte. Soderbergh é um brinquedo de parque temático, um animal treinado “passando com muita afetação uma nova mão de tinta nas barras de sua jaula”, segundo a formulação de Bill Krohn no último número de Trafic. Este cinema de copista, hiper-referencial, produz na pior das hipóteses obras desvitalizadas; na melhor, as masturbações de Quentin Tarantino e Robert Rodriguez. Os comparsas exaurem a cópia, esgotam-na em todos os sentidos, é uma carnificina. Ao menos alguma alimentação ela dará, ainda que não seja uma carne lá muito suculenta para se meter entre os dentes. De todos os lados, a artilharia do pastiche se faz mortífera. Digamos, simplesmente, que não sobra qualquer sinal de vida aí. Os afetos são reduzidos ao mínimo, os propósitos da imagem são unicamente reflexivos, o pensamento é reduzido a uma inteligência de circunstância.

3. Os irmãos Coen, os primeiros a chegar nesta febre de ironia com alguns filmes perfeitos, foram igualmente os primeiros a fazerem sombra de corpo e alma com suas cópias sucessivas dos tempos antigos: E aí, meu irmão, cadê você?, O homem que não estava lá e Os matadores de velhinhas. Para os seus detratores, eles se tornaram reacionários. Mas os irmãos estão de volta com o seu melhor filme: Onde os fracos não têm vez. Anderson e os Coen, ao mesmo tempo, voltam ao Texas os seus melhores filmes. Acaso? Onde os fracos não têm vez e Sangue Negro: a promessa lúgubre dos títulos clama por comparação. Por que, apesar das suas profundas diferenças, compartilham eles de um mesmo projeto? Antes de mais nada, são duas adaptações literárias de peso: Cormac McCarthy, Upton Sinclair. Fonte de pequenos hábitos que abrem um campo (uma alteridade) aos cineastas em termos de cópia. O que está em jogo, e tão convenientemente, é a morte da obsessão cinéfila: expandir o território, sair dos limites da referência, da citação. Arrancar a paisagem dos domínios da história do cinema, para devolvê-la ao mito da América.

Os Coen e Anderson plantam, então, a sua câmera no deserto e recomeçam do zero. A construção do vazio: em Onde os fracos não têm vez, as paisagens se sucedem rapidamente, um homem fala, não somente do hoje, mas do ontem, não somente do seu trabalho de xerife, mas do mistério do mal. Os cinéfilos sempre encontrarão as referências (O Tesouro de Sierra Madre), mas há mais em jogo do que um horizonte cinematográfico. Esta terra não é aquela do cinema. Um filme voltado ao Texas não é forçosamente um “western”. Trata-se, antes de mais nada, de um país, a América, reduzida à tabula rasa: assim como no solo do Gênese, o verme se encontra dentro da fruta. Eis que sai do deserto um louco armado de uma bomba de ar comprimido. Já se viu isto em qualquer outro lugar? Onde é que nós estamos?

A mesma coisa vale para a notável primeira hora de Sangue Negro, antes das mudanças de cenário da segunda parte. Um homem sozinho, nascido da terra como um deus, bate-se contra os elementos. É um homem sem pais, sem irmãos e sem filhos. Não há sangue algum nele, é como se estivesse completamente seco por dentro. Raramente já se viu uma tal figura de esterilidade, ligada tão intimamente ao próprio filme. P. T. A. reconstrói o mito do “self made man”, uma odisséia do homem americano o qual encontrará seu fim dentro de um barco à deriva, uma grande pista de boliche (idéia extravagante, possivelmente vinda do decorador de cenário Jack Fisk). Por detrás da História se traça o Mito; é bem conhecida a orientação do pensamento americano.

Uma e outro pedem grandes imagens. Mas são os filmes, antes de mais nada, que tomam um grande tempo. Uma bobina para mostrar um homem num buraco, duas bobinas antes que se veja o xerife em Onde Os Fracos Não Têm Vez. Ambos compartilham de uma mesma medida de grandiosidade: grandes espaços, grandes vistas, CinemaScope, corpos alongados na largura, profundidade de campo. Tudo vindo de um classicismo, portanto. A “mise en scène” estilizada aproveita-se da grande angular, dos “plongées” verticais e dos fumos “noir” do romantismo. Os cenários também são estilizados (em Sangue Negro, a igreja improvisada com a cruz de madeira por cima do altar). A ênfase no simples e no estilizado evita que objetos diferentes colocados num mesmo plano de medida disputem exageradamente a nossa atenção.

4. Será portanto a questão do selvagem e do civilizado, dos homens e dos animais, dos homens e dos deuses. Nos Coen, em um plano incrível, um cão ferido é visto pelo binóculo a atravessar o deserto e retornar. O que é que é este olhar animal? Apesar de fórmulas tais como “épico fresco” ou “saga familiar” florescerem por aí, não nos confundamos: Sangue Negro atravessa muitos decênios, mas com uma tal avareza, que se poderá crer que o mundo se evaporou às costas do herói. O afresco se fecha de forma suicida em cima de um só personagem; a coisa é, na realidade, um retrato. Um retrato de vista-paisagem a ser examinado sob todas as suas costuras, um mármore a ser esculpido na mesma forma da cabeça de Daniel Day Lewis. Hollywood não se preocupa mais tanto com esse tipo de figura possante, como o Michael Corleone de Al Pacino: personagens que encarnam a História, os quais, em um dado momento – e para o pior – foram a encarnação de uma nação. Mesmo sendo Denzel Washington um bom ator, seria preciso mais do que um casaco de peles às suas costas para fazer de “O Gângster” de Ridley Scott o arquétipo prometido. Pode-se defender a estratégia de marketing que diz que “um grande ator pede um grande papel”, mas admitamos da mesma forma que a silhueta é por demais remendada: o chapéu um tanto ridículo e deformado, a calça larga demais, as costas encurvadas, o andar manco, o olho pregado. Eis o visual.

O deserto engendra dois loucos, dois iluminados. Plainview é o romântico, o exaltado, o homem-deus. Do lado dos Coen, nada-se na neurastenia. Torpor, inércia fria, quando Chigurh aplica em suas vítimas uma bomba de ar comprimido. Pensamento disperso, ar de autômato, seus olhos continuamente embaçados parecem chorar as lágrimas que ele não terá jamais. Plano extraordinário quando ele se vê em uma tela de TV apagada: ele olha a si mesmo, apenas uma sombra, um envelope vazio. O terror próprio dos filmes dos Coen vem da desvitalização. Deitado no chão, Chigurh se imobiliza em um sorriso forçado enquanto estrangula sua vítima. Os dois loucos possuem expressões faciais forçadas: no filme de Anderson, a grandiosidade apela para o grotesco como uma exaltação do poder; no caso dos Coen, a máscara estúpida do coringa é o que vem à memória. E – seria apenas um acaso? – os dois loucos mancam a maior parte do tempo.

Nas duas fábulas, o louco se duplica num outro louco. Os Coen e Anderson se inspiram nas ficções literárias que retorcem a ordem das ações eficazes, à qual estas são habituadas, conduzindo a narrativa mais a um debate de idéias. Qualquer que seja a encarnação das idéias, elas não se afrontam, elas se dão as costas. Em Sangue Negro, é a religião contra o capitalismo. Em Onde Os Fracos Não Têm Vez, Chigurh é a encarnação do Abjeto absoluto, e dele corre sem parar Llewelyn, um personagem difícil de classificar, que não conhece o medo, um perfeito animal. Atrás destas duas feras, que não valem mais do que os pit-bulls que correm pelo deserto, aguarda o passivo xerife, homem velho e obsoleto. Esta estrutura de três elementos tem a ação concentrada do desafeto entre dois deles, como raramente já se viu no cinema, e o terceiro, nosso delegado, é o único a ficar “impressionado” pelos crimes que eles cometem, o único que ainda os ressente.

5. São, enfim, dois filmes de terror. É aí que o elemento contemporâneo trabalha e estica o classicismo. O horror é a resposta não ouvida à questão: como fabricar o mito hoje em dia? Em Sangue Negro, a trilha sonora de Johnny Greenwood – guitarrista do Radiohead – provoca uma ênfase terrificante que não repousa em cima de coisa alguma. O que se vê na tela? Um homem minado, com uma música a tocar que parece ilustrar o mais abominável dos crimes. Pode ser que este homem seja um vampiro, primo americano dos velhos monstros do velho mundo: o título “Sangue Negro” está escrito em letras góticas no cartaz do filme. O casamento do seu filho adotivo pontua a maldição quando o padre declara que os casados, bem saciados, jamais ficarão desidratados. Até lá, será necessário seguir a correnteza. O whisky na mamadeira para fazer dormir o bebê (imagem terrível), o petróleo transvazado até quase ao mar, o sangue. Em Onde Os Fracos, os crimes vão se encadeando num ritmo pavoroso. Parece impossível fazer parte desse mundo, um mundo que não é nem para os tenros, nem para os fatigados. Reencontram-se aqui as constatações “noirs” de um Clint Eastwood em Um Mundo Perfeito, ou em Sobre Meninos e Lobos, salvo que o horror nos aparece aqui com uma violência surda. O “país” não é para o homem velho, fora do espírito da época (à exceção do velho reacionário que o xerife encontra lá pelo fim do filme e que maldiz os punks). A abstenção emocional dos Coen passa longe da parafernália romântica de Anderson: o “self made man” é um crápula corroído, mas continua sendo um ambicioso, um trabalhador; ele não possui emoção, mas um desejo de comercializar (“De que me serviria um milhão de dólares? O que faria eu dos meus dias?”). Não se verá jamais suas riquezas, salvo em uma visão final derrisória. Por um outro lado, o que é que faz voar os abutres dos Coen? A avidez. As notas de dinheiro vivo, continuamente trocadas, sempre manchadas de sangue, que uma criança aceita finalmente em troca de sua camisa, desenham uma história de vampiro anti-romântica. O sangue é o dinheiro. Os dois filmes concluem sobre uma constatação de futilidade: um herói exaurido em Anderson, ávido em Coen; a agitação de um lado e o torpor de outro não deixam à tela nada além de uma grande sensação de vazio.

Não é preciso subestimar o fato de que tanto um quanto outro filme conservam um lado de jogo de construção, como se o blefe (P. T. A.) devesse forçosamente ser visível, ou a ironia obrigatoriamente de conivência (caso dos diálogos dos Coen, apesar da altura que atingem as extraordinárias cenas silenciosas). É tudo a mesma coisa. Dois filmes americanos de certa envergadura, sem que soem pomposos: eis uma novidade. O que está para vir das cabeças dos pequenos maliciosos é ainda mais surpreendente. O Zodíaco de Fincher já conseguiu enxergar bem mais longe e de modo mais largo do que Seven. Aguardamos as duas páginas sobre Che Guevara (Argentina e Guerrilha) de Soderbergh, herdeiro não-previsto de Malick, para ver se a envergadura pode ultrapassar as fronteiras.

sábado, março 08, 2008

Jogos do Poder


“These things happened. They were glorious and they changed the world. And then we fucked up the end game.” Charlie Wilson

O enunciado acima, epígrafe de Jogos do Poder (“Charlie Wilson’s War”, EUA, 2007, dir.: Mike Nichols), pode ser traduzida como: “Estas coisas aconteceram. Elas foram gloriosas e mudaram o mundo. E então, no jogo decisivo, nós fodemos tudo (morremos na praia).” Resume-se aí o argumento do filme. A incrível maneira como um congressista texano (Charlie Wilson / Tom Hanks), que está longe de ser um modelo do “politicamente correto”, uma socialite excêntrica (Joanne Herring / Julia Roberts) e um agente da CIA com o “filme queimado” (Gust Avrakotos / Philip Seymour Hoffman) se uniram e “mexeram os pauzinhos” na surdina para equipar, armar e treinar a guerrilha religiosa do Afeganistão na resistência contra a invasão soviética (1979-1989).

De fato, os três ajudaram muito a mudar o mundo. Mas para melhor? Ou para pior? Ou as duas coisas ao mesmo tempo? O que reserva o futuro, na rede terrivelmente intrincada das conseqüências das nossas ações? Por essas e outras, Jogos do Poder é um filme não apenas sobre política e sobre história contemporânea, mas também um filme “zen”. Um acontecimento e os seus efeitos jamais poderão ser exatamente calculados, pois a dinâmica dos movimentos de todas as coisas envolve muitíssimas variáveis. Mas o futuro não será gratuito ou caótico. Ele se forma a partir de uma direção bem específica do presente. O problema é saber de antemão a que futuros levarão certas decisões atuais, para podermos escolhê-las com mais cuidado.

Charlie Wilson diz que “nós fodemos tudo” no final das contas. Podemos dizer que foi sem querer, pois se soubéssemos que a ajuda militar aos afegãos (em segredo, diga-se de passagem), ao lado da negligência total em relação à reconstrução do país após a expulsão dos soviéticos, conduziria em últimas instâncias à ascensão do Talibã, do 11 de setembro e do terrorismo contemporâneo, jamais teríamos tomado as mesmas atitudes. Mas a verdadeira questão – de ordem moral – é: será necessário saber, como que através de uma bola de cristal, os resultados trágicos dos nossos erros, para que só assim evitemos de perpetrá-los? Não seria muito melhor simplesmente tomarmos atitudes mais prudentes, mais humanitárias? Por isso existem as parábolas “zen”...

O que o filme de Mike Nichols quer mostrar é que, no momento mais importante, “cagou-se no pau”. Quer dizer, os EUA movem montanhas (promovendo até mesmo alianças entre Israel e os países islâmicos) para ajudar o Afeganistão (na surdina, é claro, pois se a coisa ficasse clara para a URSS, a Guerra Fria se tornaria uma Guerra Quente, muito Quente), porque os soviéticos estão dizimando o povo afegão, fazendo barbaridades com mulheres, crianças, famílias inteiras; e, no final da guerra, com a vitória nas mãos, quando se trata de também ajudar muito humanitariamente o povo daquele país, construindo escolas e reerguendo a infra-estrutura destruída pela URSS, os soberbos EUA tiram o corpo fora. Quer dizer: aí o problema já não é com a gente...

Mas é sim! Ou ainda será! Charlie Wilson argumenta de modo bem contundente a favor dos jovens de 14 anos que ficarão completamente abandonados sem escolas, mas em vão. Pois são esses jovens, que na faixa dos 25 anos, comporão as fileiras do Talibã, da Al Qaeda, etc. A mensagem do filme é clara, ainda que implícita e sutil o suficiente para que o diretor e o produtor (o próprio Hanks) a neguem. Os EUA gastam 1 bilhão de dólares na ajuda militar de guerra, mas recusam mero 1 milhão para a reconstrução. Depois, não adianta reclamar das conseqüências... Anteriormente, eu usei o pronome “nós” para falar dessa situação. Por que? Muito simples: no nosso querido Brasil, salve-salve, tivemos um caso muito parecido – e continuamos tendo.

Em fins do século XIX, aboliu-se a escravidão. Maravilha! Mas este “glorioso” acontecimento (no dizer de Charlie Wilson) por um acaso veio acompanhado de medidas de investimento em uma infra-estrutura social que integrasse digna e responsavelmente os negros à sociedade? Óbvio que não. Desde quando no Brasil se tem educação pública de alcance universal e de qualidade, um sistema público de saúde eficiente, infra-estrutura de moradia, urbanização e saneamento básico para as populações mais “carentes”, ofertas amplas de trabalho em boas condições e bem remunerado, infra-estrutura de lazer e de cultura, só para citar alguns exemplos básicos de desenvolvimento? Desde nunca, né? O provérbio que se convencionou é: “da senzala para a favela”. E hoje, as mesmas elites responsáveis por este descaso histórico ainda têm a pachorra de reclamar da violência urbana, de pedir mais polícia, mais cadeia, mais leis e até – meu Deus do céu – pena de morte!...

De fato, nós fodemos tudo...