Um fluxo de consciência de 88 minutos. Eis a arrebatadora experiência proporcionada por A Via Láctea (Brasil, 2007, dir.: Lina Chamie). Mas não se pense que o filme apenas mergulha nas sendas herméticas do inconsciente, de uma maneira esteticamente bela, mas inacessível a quem não compartilhe da subjetividade única do personagem ou do seu autor (ou seja, todos nós). A Via Láctea não tem essas presunções vanguardistas. É um filme simples, sincero, honesto, dialogando com o espectador de modo aberto e amigável, num tom entre o (auto) irônico e o auto-complacente de um coração que sente muito mas que já está muito cansado. Tal é o caso do professor de literatura Heitor (Marco Ricca), já na meia-idade, que, após ter uma grave (e definitiva?) discussão com a sua namorada (a jovem estudante de veterinária Júlia, interpretada por Alice Braga), sai desesperado no meio do desespero de São Paulo (trânsito, acidentes, miséria, violência) para tentar encontrar-se com ela e consertar a situação.
Aqui começa a intersecção de planos que dá a grande riqueza ao filme. A viagem de Heitor ocorre por um espaço exterior que é mais do que alegoria do espaço interior, ambas as dimensões estão profunda e indissociavelmente conectadas como num organismo simbiótico. Mas essa ligação se dá através de um choque, de uma violência que muitas vezes não percebemos – o indivíduo sequer percebe a ligação semântica entre o objetivo e o subjetivo. Como diz o poeta Drummond, em A Flor e A Náusea: “O tempo pobre, o poeta pobre / fundem-se no mesmo impasse.” Esse impasse é que marca o movimento de A Via Láctea. Heitor não se soluciona assim como a cidade não se soluciona. O indivíduo está perdido em si mesmo assim como a cidade está perdida em si mesma. E o que tem mais significado poético: o indivíduo tanto se encontra quanto se perde na cidade assim como a cidade se encontra e se perde no indivíduo.
As muitas referências e citações poéticas atestam esse fundir de planos em princípio opostos e independentes, mas que, não obstante, procuram desesperadamente agir de alguma maneira digamos “especial” um no outro, repelindo-se e identificando-se a um só tempo, um tempo quântico, numa fração indefinível de segundo entre o agora e o depois, entre o aqui e o ali, entre o eu e o outro (o mundo), entre a vida e a morte. A Via Láctea equilibra-se entre os limites. O magnífico poema Chuva Interior, do poeta Mário Chamie (pai da diretora), expressa muito bem as relações e as correspondências entre o interior e o exterior. Dentre todos, é um dos dois poemas centrais do filme, quase um mote:
“CHUVA INTERIOR
Quando saía de casa
Aqui começa a intersecção de planos que dá a grande riqueza ao filme. A viagem de Heitor ocorre por um espaço exterior que é mais do que alegoria do espaço interior, ambas as dimensões estão profunda e indissociavelmente conectadas como num organismo simbiótico. Mas essa ligação se dá através de um choque, de uma violência que muitas vezes não percebemos – o indivíduo sequer percebe a ligação semântica entre o objetivo e o subjetivo. Como diz o poeta Drummond, em A Flor e A Náusea: “O tempo pobre, o poeta pobre / fundem-se no mesmo impasse.” Esse impasse é que marca o movimento de A Via Láctea. Heitor não se soluciona assim como a cidade não se soluciona. O indivíduo está perdido em si mesmo assim como a cidade está perdida em si mesma. E o que tem mais significado poético: o indivíduo tanto se encontra quanto se perde na cidade assim como a cidade se encontra e se perde no indivíduo.
As muitas referências e citações poéticas atestam esse fundir de planos em princípio opostos e independentes, mas que, não obstante, procuram desesperadamente agir de alguma maneira digamos “especial” um no outro, repelindo-se e identificando-se a um só tempo, um tempo quântico, numa fração indefinível de segundo entre o agora e o depois, entre o aqui e o ali, entre o eu e o outro (o mundo), entre a vida e a morte. A Via Láctea equilibra-se entre os limites. O magnífico poema Chuva Interior, do poeta Mário Chamie (pai da diretora), expressa muito bem as relações e as correspondências entre o interior e o exterior. Dentre todos, é um dos dois poemas centrais do filme, quase um mote:
“CHUVA INTERIOR
Quando saía de casa
percebeu que a chuva
soletrava
uma palavra sem nexo
na pedra da calçada.
Não percebeu
que percebia
que a chuva que chovia
não chovia
na rua por onde
andava.
Era a chuva
que trazia
de dentro de sua casa;
era a chuva
que molhava
o seu silêncio
molhado
na pedra que carregava.
Um silêncio
feito mina,
explosivo sem palavra,
quase um fio de conversa
no seu nexo de rotina
em cada esquina
que dobrava.
Fora de casa,
seco na calçada,
percebeu que percebia
no auge de sua raiva
que a chuva não mais chovia
nas águas que imaginava.”
O outro texto-mote é o poema Campo de Flores, de Carlos Drummond de Andrade, do qual o personagem de Marco Ricca destaca a primeira estrofe:
“Deus me deu um amor no tempo de madureza,
O outro texto-mote é o poema Campo de Flores, de Carlos Drummond de Andrade, do qual o personagem de Marco Ricca destaca a primeira estrofe:
“Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus - ou foi talvez o Diabo - deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.”
A cena do diálogo entre Heitor e o bandido que aborda o seu carro, parado no farol, é a mais sublime, considerando o “diálogo” entre o universo subjetivo e o universo objetivo no qual o filme fundamenta a sua construção. É nela que o filme mais revela a força de sua alma. Eu disse no começo que A Via Láctea é um fluxo de consciência, técnica marcante da narrativa literária moderna. No filme, esse fluxo caracteriza-se como um delírio (daydream), mas aquele delírio específico do poeta que vai aos poucos e trabalhosamente percebendo a natureza da chuva interior, conforme vai contemplando a “chuva exterior”. Todas as cenas da jornada dantesca de Heitor mostram esse processo, o processo da descoberta interior através da viagem exterior. Viagem exterior que, ainda que fosse apenas uma manifestação delirante / alegórica da viagem interior, não derrubaria o valor objetivo e a existência factual e independente do mundo exterior. Não é um tema original, mas é um dos mais pertinentes e universais da história humana, já bastante trabalhado pela Literatura e também pelo Cinema.
A cena do diálogo entre Heitor e o bandido que aborda o seu carro, parado no farol, é a mais sublime, considerando o “diálogo” entre o universo subjetivo e o universo objetivo no qual o filme fundamenta a sua construção. É nela que o filme mais revela a força de sua alma. Eu disse no começo que A Via Láctea é um fluxo de consciência, técnica marcante da narrativa literária moderna. No filme, esse fluxo caracteriza-se como um delírio (daydream), mas aquele delírio específico do poeta que vai aos poucos e trabalhosamente percebendo a natureza da chuva interior, conforme vai contemplando a “chuva exterior”. Todas as cenas da jornada dantesca de Heitor mostram esse processo, o processo da descoberta interior através da viagem exterior. Viagem exterior que, ainda que fosse apenas uma manifestação delirante / alegórica da viagem interior, não derrubaria o valor objetivo e a existência factual e independente do mundo exterior. Não é um tema original, mas é um dos mais pertinentes e universais da história humana, já bastante trabalhado pela Literatura e também pelo Cinema.
O conteúdo poético e lírico de A Via Láctea se expressa num discurso bem equivalente, que envolve profundamente o espectador, não-preocupado apenas em “acompanhar a história”, mas em contemplar e vivenciar de uma maneira especial e profunda o universo mostrado na tela. Esse transporte de espírito, esse caráter meditativo, é o melhor da poesia e do cinema de poesia. Obras assim nos tocam profundamente e fazem com que olhemos para o mundo com outros olhos. É esse aspecto, digamos, lisérgico, que eu procuro no Cinema. Vi este filme numa sala na Avenida Paulista (topos que é muito destacado na tela). Ao sair do cinema para a avenida, eu me senti como que outra pessoa, com um olhar totalmente novo – ou um olhar que recuperei, já que o cotidiano só faz por cegar a nossa visão poética. Sem contar que ver na tela a nossa cidade, lugares que freqüentamos e pelos quais passamos diariamente – prestando atenção neles ou não – sendo trabalhados com toda a fotogenia que só a sétima arte pode conceder é uma experiência vivificante. É por isso que, de quando em quando, é necessário “consumir” Arte, para a saúde da alma. Que o cinema brasileiro nos ofereça mais e mais experiências assim!
muito bom o blog e as resenhas!
ResponderExcluirgostei!
Abraços!!
Que filme brasileiro teve a melhor direção de fotografia em 2007?
ResponderExcluirOs indicados são:
BAIXIO DAS BESTAS, direção de fotografia de Walter Carvalho
MUTUM, direção de fotografia de Mauro Pinheiro Jr.
A VIA LÁCTEA, direção de fotografia de Kátia Coelho
Vote já!
gosto tanto desse filme =)
ResponderExcluirÉ um filme bonito e diferente mesmo!
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