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sexta-feira, novembro 09, 2007

A Via Láctea


Um fluxo de consciência de 88 minutos. Eis a arrebatadora experiência proporcionada por A Via Láctea (Brasil, 2007, dir.: Lina Chamie). Mas não se pense que o filme apenas mergulha nas sendas herméticas do inconsciente, de uma maneira esteticamente bela, mas inacessível a quem não compartilhe da subjetividade única do personagem ou do seu autor (ou seja, todos nós). A Via Láctea não tem essas presunções vanguardistas. É um filme simples, sincero, honesto, dialogando com o espectador de modo aberto e amigável, num tom entre o (auto) irônico e o auto-complacente de um coração que sente muito mas que já está muito cansado. Tal é o caso do professor de literatura Heitor (Marco Ricca), já na meia-idade, que, após ter uma grave (e definitiva?) discussão com a sua namorada (a jovem estudante de veterinária Júlia, interpretada por Alice Braga), sai desesperado no meio do desespero de São Paulo (trânsito, acidentes, miséria, violência) para tentar encontrar-se com ela e consertar a situação.

Aqui começa a intersecção de planos que dá a grande riqueza ao filme. A viagem de Heitor ocorre por um espaço exterior que é mais do que alegoria do espaço interior, ambas as dimensões estão profunda e indissociavelmente conectadas como num organismo simbiótico. Mas essa ligação se dá através de um choque, de uma violência que muitas vezes não percebemos – o indivíduo sequer percebe a ligação semântica entre o objetivo e o subjetivo. Como diz o poeta Drummond, em A Flor e A Náusea: “O tempo pobre, o poeta pobre / fundem-se no mesmo impasse.” Esse impasse é que marca o movimento de A Via Láctea. Heitor não se soluciona assim como a cidade não se soluciona. O indivíduo está perdido em si mesmo assim como a cidade está perdida em si mesma. E o que tem mais significado poético: o indivíduo tanto se encontra quanto se perde na cidade assim como a cidade se encontra e se perde no indivíduo.

As muitas referências e citações poéticas atestam esse fundir de planos em princípio opostos e independentes, mas que, não obstante, procuram desesperadamente agir de alguma maneira digamos “especial” um no outro, repelindo-se e identificando-se a um só tempo, um tempo quântico, numa fração indefinível de segundo entre o agora e o depois, entre o aqui e o ali, entre o eu e o outro (o mundo), entre a vida e a morte. A Via Láctea equilibra-se entre os limites. O magnífico poema Chuva Interior, do poeta Mário Chamie (pai da diretora), expressa muito bem as relações e as correspondências entre o interior e o exterior. Dentre todos, é um dos dois poemas centrais do filme, quase um mote:

“CHUVA INTERIOR

Quando saía de casa
percebeu que a chuva
soletrava
uma palavra sem nexo
na pedra da calçada.
Não percebeu
que percebia
que a chuva que chovia
não chovia
na rua por onde
andava.
Era a chuva
que trazia
de dentro de sua casa;
era a chuva
que molhava
o seu silêncio
molhado
na pedra que carregava.
Um silêncio
feito mina,
explosivo sem palavra,
quase um fio de conversa
no seu nexo de rotina
em cada esquina
que dobrava.
Fora de casa,
seco na calçada,
percebeu que percebia
no auge de sua raiva
que a chuva não mais chovia
nas águas que imaginava.”

O outro texto-mote é o poema Campo de Flores, de Carlos Drummond de Andrade, do qual o personagem de Marco Ricca destaca a primeira estrofe:

“Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus - ou foi talvez o Diabo - deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.”

A cena do diálogo entre Heitor e o bandido que aborda o seu carro, parado no farol, é a mais sublime, considerando o “diálogo” entre o universo subjetivo e o universo objetivo no qual o filme fundamenta a sua construção. É nela que o filme mais revela a força de sua alma. Eu disse no começo que A Via Láctea é um fluxo de consciência, técnica marcante da narrativa literária moderna. No filme, esse fluxo caracteriza-se como um delírio (daydream), mas aquele delírio específico do poeta que vai aos poucos e trabalhosamente percebendo a natureza da chuva interior, conforme vai contemplando a “chuva exterior”. Todas as cenas da jornada dantesca de Heitor mostram esse processo, o processo da descoberta interior através da viagem exterior. Viagem exterior que, ainda que fosse apenas uma manifestação delirante / alegórica da viagem interior, não derrubaria o valor objetivo e a existência factual e independente do mundo exterior. Não é um tema original, mas é um dos mais pertinentes e universais da história humana, já bastante trabalhado pela Literatura e também pelo Cinema.

O conteúdo poético e lírico de A Via Láctea se expressa num discurso bem equivalente, que envolve profundamente o espectador, não-preocupado apenas em “acompanhar a história”, mas em contemplar e vivenciar de uma maneira especial e profunda o universo mostrado na tela. Esse transporte de espírito, esse caráter meditativo, é o melhor da poesia e do cinema de poesia. Obras assim nos tocam profundamente e fazem com que olhemos para o mundo com outros olhos. É esse aspecto, digamos, lisérgico, que eu procuro no Cinema. Vi este filme numa sala na Avenida Paulista (topos que é muito destacado na tela). Ao sair do cinema para a avenida, eu me senti como que outra pessoa, com um olhar totalmente novo – ou um olhar que recuperei, já que o cotidiano só faz por cegar a nossa visão poética. Sem contar que ver na tela a nossa cidade, lugares que freqüentamos e pelos quais passamos diariamente – prestando atenção neles ou não – sendo trabalhados com toda a fotogenia que só a sétima arte pode conceder é uma experiência vivificante. É por isso que, de quando em quando, é necessário “consumir” Arte, para a saúde da alma. Que o cinema brasileiro nos ofereça mais e mais experiências assim!

terça-feira, novembro 06, 2007

Zodíaco


Como é difícil entregarmo-nos a uma experiência nova, sem preconceitos e sem pré-conceitos, e assimilarmos livremente o que essa experiência nova tem a nos oferecer por si só! O mais comum é, ao nos deparar com algo novo, procurarmos logo enquadrar a novidade dentro de algum padrão já conhecido e aceito. Desse modo, é difícil lermos, de fato, um livro, ou assistirmos verdadeiramente um filme. O que a gente “lê” e o que a gente “assiste” são apenas nossas experiências passadas e nossas idéias já bem estabelecidas. O ideal seria abrir mão e esquecer de todo o nosso repertório pessoal na hora de experimentar uma obra de arte nova. Digo: na hora de experimentar, e não na hora de julgar – pois nesta o repertório tem o seu valor. Naturalmente, o fato de as produções da “indústria cultural” muitas vezes repetirem as mesmas fórmulas de construção e de conteúdo não ajuda nem um pouco para uma boa fenomenologia da recepção.

Assim, quando me sentei para ver Zodíaco (“Zodiac”, EUA, 2007, dir.: David Fincher), não pude deixar de esperar que o filme correspondesse aos (interessantes) padrões das fitas de serial killer, principalmente Seven, Os Sete Crimes Capitais (“Seven”, EUA, 1994), obra-prima do diretor David Fincher. No entanto, que decepção! Zodíaco passa longe de Seven. Mas essa decepção – sem ironia alguma – é o melhor do filme. O diferencial de Zodíaco é que a sua história é muito longa (em torno de 22 anos), confusa, aberta, com várias pontas soltas, sem qualquer definição, sem qualquer significado definitivo, sem desfecho justo ou injusto, sem nem mesmo a famosa justiça poética, sem grandes heroísmos, ou grandes vilanias (a vilania aqui é muito mesquinha e incoerente)... Enfim, a história de Zodíaco é como a própria vida. A vida que é uma obra aberta demais, complexa demais – mas sem qualquer organização perfeitamente lógica ou racional (isso é o pior). A vida não tem aquela grandeza épica, as coisas na vida não se encaixam perfeitamente como numa tragédia clássica, nem tudo na vida se resolve (pelo melhor ou pelo pior). Nesse sentido, a vida não imita a arte. Nem a arte imita a vida. Exceto Zodíaco.

Quando olhamos para uma experiência da vida e dizemos: “Isto bem que daria um filme!”, certamente que essa experiência foge ao comum e cotidiano, isto é, foge à própria vida, vai além dela; por isso, nós nos interessamos, guardamos na memória tal acontecimento e sentimos a vontade de imortalizá-lo numa obra de arte. Assim, em relação a Seven, Os Sete Crimes Capitais, se fosse uma história real ainda não levada ao Cinema, com certeza diríamos que daria um ótimo filme (naturalmente um filme narrativo, com os fatos dramatizados). Porém, não podemos dizer o mesmo de Zodíaco. Filmes de “serial killer” normalmente descobrem verdades, chegam a certezas altamente significativas (isso sem falar na “justiça”) que nós desesperadamente desejamos para as nossas próprias vidas. Mas, como eu disse, a vida nem sempre nos concede esses prêmios. Por isso, muitas vezes o melhor é esquecer, deixar para lá, deixar envelhecer, que o tempo tudo arrasta e apaga e supera, “live and let live” – ou “live and let die” (que é o caso aqui)... Isso é o que recomenda o detetive David Toschi (interpretado por Mark Ruffalo) ao jovem e obsessivo investigador amador Robert Graysmith (Jake Gyllenhaal).

Dessa maneira, Zodíaco está mais para um documentário do que para um filme dramático. A decepção de que eu falei ocorre quando se vê o filme como um suspense policial de ficção, ou, pelo menos, como um enredo baseado em fatos reais onde estes foram romanceados para ficarem mais interessantes. Nada em Zodíaco é feito para ficar mais “interessante”, de acordo com a lógica tipicamente hollywoodiana. Desde Seven, o cinema de David Fincher é um cinema de choque; mas esse choque sempre se pautou pelo inusitado, pelo bizarro, pelo grotesco, pelo violento ou até mesmo pelo fantástico (caso de Alien 3 e de Clube da Luta). Em Zodíaco, o que choca é a ausência desse “choque”; o que choca aqui é a própria vida, absolutamente sem graça, incoerente e frustrante, que nos é jogada na cara. A ausência de respostas, de soluções, de justiças, de verdades, de certezas, de sentidos, de razões... Isso é mais aterrador do que qualquer história romanesca, rocambolesca, mirabolante e fabulosa de “serial killers” sádicos e megalomaníacos. Eu sequer diria que Zodíaco tem um anti-clímax, pois isso já seria um clímax, equivalente a ele, assim como a anti-matéria é equivalente à matéria. Zodíaco simplesmente não tem nada. É um vácuo completo. Quem quiser, que chame isso de niilismo.