Mais uma postagem com o bate-bola Cinema-Literatura. Algumas obras literárias são tão, digamos assim, fotogênicas, que a leitura torna-se uma experiência cinematográfica, uma película projetada na nossa imaginação. Transcrevo abaixo um pequeno trecho do Ensaio Sobre a Cegueira, do gigante José Saramago:
“Metido na guarita para proteger-se do frio, ao soldado de sentinela tinha-lhe parecido ouvir uns ligeiros ruídos que não conseguira identificar, de todo o modo não pensou que pudessem vir de dentro, teria sido o ramalhar breve das árvores, uma ramagem que o vento fizesse roçar de leve na grade. Outro ruído lhe chegou de súbito aos ouvidos, mas este foi diferente, uma pancada, um choque, para ser mais preciso, não podia ser obra de vento. Nervoso, o soldado saiu da guarita engatilhando a espingarda automática e olhou na direcção do portão. Não viu nada. O ruído, porém, voltara, mais forte, agora era como o de unhas raspando na superfície rugosa. A chapa do portão, pensou. Deu um passo para a tenda de campanha onde o sargento dormia, mas reteve-o o pensamento de que se desse falso alarme teria de ouvir das boas, os sargentos não gostam que os acordem, mesmo quando haja motivo. Tornou a olhar para o portão e esperou, tenso. Muito devagar, no intervalo entre dois ferros verticais, como um fantasma, começou a aparecer uma cara branca. A cara de um cego. O medo fez gelar o sangue do soldado, e foi o medo que o fez apontar a arma e disparar uma rajada à queima-roupa.”
Eu leio esse trecho como se estivesse assistindo a um filme. A cena inteira já me vem à cabeça, natural e espontânea, rigorosamente fotografada e montada. E essa cena me faz lembrar bastante os filmes de zumbis, principalmente os do mestre George Romero. Alguém mais percebe isso? Será que Fernando Meireles, que está filmando Blindness – adaptação dessa obra incrível – perceberá isso? A obra de José Saramago alia sutilmente a densidade mítica da fábula à ironia corrosiva do comentário social, temperadas com fino humanismo.. Será que Meireles captará tais sutilezas? No blog do filme, o diretor escreve:
“Ensaio Sobre a Cegueira permite tantas leituras que a toda hora me pego conferindo se este ou aquele viés da história estão contemplados no que tenho filmado. Cada vez que me asseguro de um ponto, outras quatro dúvidas aparecem. – ‘Tudo, não teremos’, dizia meu avô. Mas bem que tento.”
www.blogdeblindness.blogspot.com
Ficamos esperançosos. É esperar para ver (sem trocadilho). Mas bem que a cena acima poderia ser o “teaser trailer” do filme...
“Metido na guarita para proteger-se do frio, ao soldado de sentinela tinha-lhe parecido ouvir uns ligeiros ruídos que não conseguira identificar, de todo o modo não pensou que pudessem vir de dentro, teria sido o ramalhar breve das árvores, uma ramagem que o vento fizesse roçar de leve na grade. Outro ruído lhe chegou de súbito aos ouvidos, mas este foi diferente, uma pancada, um choque, para ser mais preciso, não podia ser obra de vento. Nervoso, o soldado saiu da guarita engatilhando a espingarda automática e olhou na direcção do portão. Não viu nada. O ruído, porém, voltara, mais forte, agora era como o de unhas raspando na superfície rugosa. A chapa do portão, pensou. Deu um passo para a tenda de campanha onde o sargento dormia, mas reteve-o o pensamento de que se desse falso alarme teria de ouvir das boas, os sargentos não gostam que os acordem, mesmo quando haja motivo. Tornou a olhar para o portão e esperou, tenso. Muito devagar, no intervalo entre dois ferros verticais, como um fantasma, começou a aparecer uma cara branca. A cara de um cego. O medo fez gelar o sangue do soldado, e foi o medo que o fez apontar a arma e disparar uma rajada à queima-roupa.”
Eu leio esse trecho como se estivesse assistindo a um filme. A cena inteira já me vem à cabeça, natural e espontânea, rigorosamente fotografada e montada. E essa cena me faz lembrar bastante os filmes de zumbis, principalmente os do mestre George Romero. Alguém mais percebe isso? Será que Fernando Meireles, que está filmando Blindness – adaptação dessa obra incrível – perceberá isso? A obra de José Saramago alia sutilmente a densidade mítica da fábula à ironia corrosiva do comentário social, temperadas com fino humanismo.. Será que Meireles captará tais sutilezas? No blog do filme, o diretor escreve:
“Ensaio Sobre a Cegueira permite tantas leituras que a toda hora me pego conferindo se este ou aquele viés da história estão contemplados no que tenho filmado. Cada vez que me asseguro de um ponto, outras quatro dúvidas aparecem. – ‘Tudo, não teremos’, dizia meu avô. Mas bem que tento.”
www.blogdeblindness.blogspot.com
Ficamos esperançosos. É esperar para ver (sem trocadilho). Mas bem que a cena acima poderia ser o “teaser trailer” do filme...
E a ansiedade pra ver o filme?
ResponderExcluirO blog do Meirelles tá me matando!
Essa cena é, sim, muito plástica. A cara branca do cego, o susto do guarda e o tiro a queima-roupa: lembra muito as cenas de zumbis...
sabe qual outra cena eu queria ver como teaser trailler? Eles entrando na igreja, e as estátuas dos santos todas vendadas... arrepiei surrealmente ao ler essa passagem!