Uma única seqüência de Alfred Hitchcock vale mais do que muitos filmes inteiros que assomam por aí. Nesta madrugada insone, liguei a TV e eis que o combalido SBT estava exibindo Intriga Internacional (“North by Northwest”: EUA, 1959). Sentei-me a tempo de ver – mais uma vez – a famosa perseguição de Cary Grant por um avião. Para quem nunca viu (demorou!), aqui vai: O personagem de Grant deve se encontrar com um homem desconhecido no meio de um campo árido e ensolarado. Num plano aéreo e fixo, muito à distância, vemos a vastidão do deserto, atravessado por uma estreita estrada, na qual vemos se aproximar, lentamente, um ponto minúsculo que é um ônibus. Chegando ao centro do quadro, o ônibus pára e dele desce um ponto ainda mais minúsculo que é Cary Grant em seu indefectível terno cinza – combinando com o cabelo grisalho.
O ônibus vai embora, deixando no quadro do imenso deserto um pequeno risco ereto que mal se distingue de outros pequenos riscos eretos que são estacas fincadas no chão, possivelmente definindo território, embora não haja cercas. Este plano, mostrando a pequenez quase imperceptível do homem naquele ambiente inóspito, é razoavelmente longo. Cary Grant, mostrado então em plano americano (o choque provocado pela enorme diferença de distância entre este plano e o anterior vai contra a cartilha cinematográfica que se leciona na Universidade e mostra o gênio do mestre do suspense), olha para todos os lados: subjetivas mostram o que ele vê, alternando-se com o mesmo plano americano de sua figura, no qual percebemos a preocupação no rosto da personagem; para onde quer que se volte, ele vê apenas a extensão desolada e aparentemente infinita do deserto. Aquelas mesmas estacas, fincadas em perspectiva, aumentam essa sensação.
Também é significativamente encaixado aí um plano em conjunto de Cary Grant, ainda pequeno no canto esquerdo da tela, enquanto o canto direito é tomado pelo vazio. Seria interessante relacionar esta imagem ao plano antológico da perseguição, que será citado mais adiante, onde Hitchcock também faz uma composição criativa do quadro baseando-se nos lados esquerdo e direito: seja desarmonizando-os completamente, seja harmonizando-os de maneira insólita. No horizonte da estrada, um pequeno ponto se aproxima a grande velocidade: é um carro. Vemos a ansiedade no rosto de Grant. Contudo, o veículo passa reto e perde-se no horizonte oposto. Frustração. O tempo passa. Outro carro: nova esperança e novo desgosto. Então vem um ônibus: este dá um banho de poeira em Cary Grant. A fineza do humor de Hitchcock, humor sempre negro e cruelmente irônico, sarcástico, é impagável.
Nesta livre e indigna descrição que faço da seqüência toda, já se pode perceber a sua demora. Essa lentidão é fundamental para a criação e manutenção da atmosfera dramática. Vale a pena dizer também que não há qualquer música. São essas pequenas e simples técnicas que fazem a grandeza do artista e o diferenciam dos demais. Não consigo deixar de pensar que muitos desses aspectos de decupagem (como a lentidão proposital) seriam as últimas coisas que passariam pela cabeça de muitos jovens “filmmakers” contemporâneos, alguns deles bastante talentosos e bem considerados; tudo para tornar o filme mais dinâmico e para evitar “barriga”. Alfred Hitchcock é um daqueles mestres que não fazem escola. Por que será?
Mas retornemos à “Intriga Internacional”. Atravessando o campo, vem chegando um veículo; ele pára, deixa um homem e vai-se. Cary Grant fica reparando fixamente neste cavalheiro bem vestido. Adivinhamos seus pensamentos: “Será que é ele quem devo encontrar?” Nosso herói dirige-se até ele para tirar satisfações: não, não é “ele”; o homem está apenas esperando o próximo ônibus. Ambos reparam em um pequeno avião pesticida sobrevoando longe os campos. O homem estranho diz: “Que esquisito! Aquele avião está jogando veneno onde não há plantação...” Esta fala, dita naquele momento, se você já assistiu ao filme antes, torna-se uma das mais assustadoras da história do cinema. Também aqui temos um grande exemplo da sutilíssima ironia de Hitchcock.
Providencialmente, chega o ônibus do homem. Cary Grant está sozinho novamente. Bem, não tão sozinho: eis que o pequeno avião se aproxima, vem se aproximando direta e assustadoramente de Cary Grant, que tem de se jogar ao chão; o avião quase o atropela. À distância, a aeronave dá a volta – jamais chegamos a ver o seu piloto. Cary Grant vira-se, levanta-se e começa a correr. Em um plano antológico, vemos Grant correndo, do lado direito do quadro, enquanto o avião o persegue por trás, do lado esquerdo, cada vez mais perto e atirando. Um homem, num campo isolado e completamente aberto, perseguido por um avião homicida. A absoluta falta de esperança na defesa, a inutilidade de qualquer tentativa nesse sentido, que só poderia ser ingênua e ridícula, a diferença quase covarde de proporção entre um avião armado com metralhadoras no ataque e um homem desarmado – mas com terno bem alinhado – na defesa, são idéias de uma força quase mítica. Hitchcock adora essas idéias insólitas e curiosamente significativas.
Agora, assista ao filme e veja como a cena termina. Por ora, é suficiente dizer que vemos a maioria dos filmes de cinema como se estivéssemos lendo romances folhetinescos. Isto é, se uma obra, se um discurso narrativo não investe de uma maneira particular na estética, a única coisa em que nos concentramos então, que desperta o nosso interesse, é a própria narrativa em si. Ficamos ansiosos pela história, em saber como se desenvolve e como se resolve. Com os (melhores) filmes de Hitchcock não é assim. Nós poderíamos vê-los dublados em grego, que ainda assim não perderíamos tanto quanto alguns poderiam supor. O próprio trabalho gestual e facial dos atores, para começar, já seria suficiente para entendermos as linhas e orientações do drama. Assista-se aos filmes do “mestre do suspense” com o som da TV em “mute” e entenderão-se perfeitamente as disposições do diretor em relegar o mínimo de significação aos diálogos, em chamar os atores de “gado”, em defender um cinema puro cujo desenvolvimento teria sido prejudicado pela invenção do falado.
O ônibus vai embora, deixando no quadro do imenso deserto um pequeno risco ereto que mal se distingue de outros pequenos riscos eretos que são estacas fincadas no chão, possivelmente definindo território, embora não haja cercas. Este plano, mostrando a pequenez quase imperceptível do homem naquele ambiente inóspito, é razoavelmente longo. Cary Grant, mostrado então em plano americano (o choque provocado pela enorme diferença de distância entre este plano e o anterior vai contra a cartilha cinematográfica que se leciona na Universidade e mostra o gênio do mestre do suspense), olha para todos os lados: subjetivas mostram o que ele vê, alternando-se com o mesmo plano americano de sua figura, no qual percebemos a preocupação no rosto da personagem; para onde quer que se volte, ele vê apenas a extensão desolada e aparentemente infinita do deserto. Aquelas mesmas estacas, fincadas em perspectiva, aumentam essa sensação.
Também é significativamente encaixado aí um plano em conjunto de Cary Grant, ainda pequeno no canto esquerdo da tela, enquanto o canto direito é tomado pelo vazio. Seria interessante relacionar esta imagem ao plano antológico da perseguição, que será citado mais adiante, onde Hitchcock também faz uma composição criativa do quadro baseando-se nos lados esquerdo e direito: seja desarmonizando-os completamente, seja harmonizando-os de maneira insólita. No horizonte da estrada, um pequeno ponto se aproxima a grande velocidade: é um carro. Vemos a ansiedade no rosto de Grant. Contudo, o veículo passa reto e perde-se no horizonte oposto. Frustração. O tempo passa. Outro carro: nova esperança e novo desgosto. Então vem um ônibus: este dá um banho de poeira em Cary Grant. A fineza do humor de Hitchcock, humor sempre negro e cruelmente irônico, sarcástico, é impagável.
Nesta livre e indigna descrição que faço da seqüência toda, já se pode perceber a sua demora. Essa lentidão é fundamental para a criação e manutenção da atmosfera dramática. Vale a pena dizer também que não há qualquer música. São essas pequenas e simples técnicas que fazem a grandeza do artista e o diferenciam dos demais. Não consigo deixar de pensar que muitos desses aspectos de decupagem (como a lentidão proposital) seriam as últimas coisas que passariam pela cabeça de muitos jovens “filmmakers” contemporâneos, alguns deles bastante talentosos e bem considerados; tudo para tornar o filme mais dinâmico e para evitar “barriga”. Alfred Hitchcock é um daqueles mestres que não fazem escola. Por que será?
Mas retornemos à “Intriga Internacional”. Atravessando o campo, vem chegando um veículo; ele pára, deixa um homem e vai-se. Cary Grant fica reparando fixamente neste cavalheiro bem vestido. Adivinhamos seus pensamentos: “Será que é ele quem devo encontrar?” Nosso herói dirige-se até ele para tirar satisfações: não, não é “ele”; o homem está apenas esperando o próximo ônibus. Ambos reparam em um pequeno avião pesticida sobrevoando longe os campos. O homem estranho diz: “Que esquisito! Aquele avião está jogando veneno onde não há plantação...” Esta fala, dita naquele momento, se você já assistiu ao filme antes, torna-se uma das mais assustadoras da história do cinema. Também aqui temos um grande exemplo da sutilíssima ironia de Hitchcock.
Providencialmente, chega o ônibus do homem. Cary Grant está sozinho novamente. Bem, não tão sozinho: eis que o pequeno avião se aproxima, vem se aproximando direta e assustadoramente de Cary Grant, que tem de se jogar ao chão; o avião quase o atropela. À distância, a aeronave dá a volta – jamais chegamos a ver o seu piloto. Cary Grant vira-se, levanta-se e começa a correr. Em um plano antológico, vemos Grant correndo, do lado direito do quadro, enquanto o avião o persegue por trás, do lado esquerdo, cada vez mais perto e atirando. Um homem, num campo isolado e completamente aberto, perseguido por um avião homicida. A absoluta falta de esperança na defesa, a inutilidade de qualquer tentativa nesse sentido, que só poderia ser ingênua e ridícula, a diferença quase covarde de proporção entre um avião armado com metralhadoras no ataque e um homem desarmado – mas com terno bem alinhado – na defesa, são idéias de uma força quase mítica. Hitchcock adora essas idéias insólitas e curiosamente significativas.
Agora, assista ao filme e veja como a cena termina. Por ora, é suficiente dizer que vemos a maioria dos filmes de cinema como se estivéssemos lendo romances folhetinescos. Isto é, se uma obra, se um discurso narrativo não investe de uma maneira particular na estética, a única coisa em que nos concentramos então, que desperta o nosso interesse, é a própria narrativa em si. Ficamos ansiosos pela história, em saber como se desenvolve e como se resolve. Com os (melhores) filmes de Hitchcock não é assim. Nós poderíamos vê-los dublados em grego, que ainda assim não perderíamos tanto quanto alguns poderiam supor. O próprio trabalho gestual e facial dos atores, para começar, já seria suficiente para entendermos as linhas e orientações do drama. Assista-se aos filmes do “mestre do suspense” com o som da TV em “mute” e entenderão-se perfeitamente as disposições do diretor em relegar o mínimo de significação aos diálogos, em chamar os atores de “gado”, em defender um cinema puro cujo desenvolvimento teria sido prejudicado pela invenção do falado.
Isso tudo não quer dizer, é lógico, que o enredo é fraco, que o roteiro dialogado não tenha qualquer importância. O buraco é mais embaixo. Ver um filme de Hitchcock não é como ler uma narrativa romanesca; ver Hitchcock é como apreciar uma grande pintura, ou ouvir uma grande música. Não importa quantas vezes se repete, nunca se fica enjoado, e sempre se descobrem novas nuanças, é sempre uma nova experiência. Eis a grande arte. Cada imagem em uma película de Alfred Hitchcock é rigorosamente pensada, é dotada de uma identidade estética e semântica única, e busca sempre relacionar-se nos mais altos níveis estéticos e semânticos com as outras imagens no filme. Há algo de Eisenstein na montagem desta famosa seqüência de “Intriga Internacional”. Em algum ponto entre a pintura e a música encontra-se a sétima arte.
Olá, André. Sua crítica é muito boa e justa a essa obra magnífica de um dos maiores mestres do cinema. Gostei do teu blog.
ResponderExcluirUm abraço