Páginas

terça-feira, março 27, 2007

continuação de Os 12 Trabalhos


Os 12 Trabalhos não consegue unir equilibradamente a crônica social leve e cotidiana, apegadas a personagens típicos e situações exemplares, com os elementos pesados que o filme procura trazer de mito, que pedem tintas mais épicas, trágicas e sobretudo alegóricas. A narrativa é legal, estimulante e envolvente, mas não tem a densidade que se poderia esperar tendo em vista as suas referências mitológicas, tendo em vista que se trata da “releitura” de um mito. Releitura bem frouxa esta. No aspecto de crônica, o filme é bem interessante, estão lá todos os elementos do universo dos motoboys, colocados de modo quase documental – aliás, são interessantes os comentários que Héracles faz sobre a vida e o destino de pessoas que ele encontra, mas esses comentários, feitos com voz em “off”, são extra-diegéticos (não fazem parte do universo representado pela narrativa), pois o personagem do jovem motoboy não tem como saber tanto sobre aquelas pessoas naquele momento; eis a veia de documentário do filme. Não obstante, os elementos míticos dados pelo título, pelo nome do protagonista e pelo marketing, exigem uma narrativa que vá além das ambições documentais.

O filme de Ricardo Elias tem vários momentos ricos em cinema e em significado: o diálogo em que um motoboy compara o mapa da cidade de São Paulo ao rosto de um cão – aliás, os outros motoboys são muito bem caracterizados; o jovem Héracles que não é só um “boy”, mas um artista (o filme poderia se desenvolver inteiramente em torno dessa premissa); a fotografia criativa de certos planos, particularmente no uso da profundidade de campo e na cena em que Héracles discute com um guarda de trânsito e a câmera permanece fixa no rosto do jovem motoboy (jamais chega-se a ver o policial). Infelizmente, os momentos bons não formam um todo denso e coerente, uma composição harmônica.

Os 12 Trabalhos faz bem o que faz, mas poderia fazer bem mais de acordo com suas próprias pretensões “míticas”. O filme literalmente deixa muito a desejar, principalmente no final. A narrativa poderia ser mais elaborada e amarrada, de preferência puxando para o épico ou para o trágico. Da maneira como está, o roteiro tem várias pontas soltas, como o diálogo no começo entre Héracles e um antigo companheiro de crime, em que este procura ao mesmo tempo seduzir e chantagear o jovem recém egresso da Febem a continuar na vida criminosa: o espectador fica ansioso para saber se o protagonista resistirá ou não a essa tentação, se conseguirá vencer a provação de um dia de trabalho e ser contratado, mas nada disso é mostrado ou sugerido com força suficiente à expectativa criada pelo começo do filme. Entendemos (será mesmo?) que Héracles conseguiu o emprego apenas porque o seu primo Jonas morreu (num acidente de trânsito), abrindo uma vaga para motoboy na Olimpo Express. Isso é muito pouco. Também é pouco o efeito causado pela morte de Jonas: Héracles pilota sua moto loucamente até a praia (supomos que isso se deve ao fato de o primo Jonas ter cultivado o sonho de se mudar para o litoral), olha para o mar e o filme termina (!?) É sofrível ver o protagonista explicando, nesta última cena, a raiz mitológica do seu nome (mas sem fazer qualquer referência aos “doze trabalhos de Hércules”). Isto é, o filme não explica adequadamente suas referências míticas ao longo da própria narrativa, de modo cinematográfico e coerente como seria de se esperar, e aí joga-se uma fala em “off” no final para “eliminar” quaisquer possíveis dúvidas que tenham permanecido no espectador... A única coisa que presta no desfecho é a forte e bela cena da troca de olhares tensos entre Héracles – já montado na moto e de capacete – e os seus colegas de firma. Cinematograficamente bela. Então, ele parte para o litoral. Seria muito forçado tentar justificar este final como dotado daquela concisão sugestiva que busca evitar o melodrama e o didatismo; não devemos confundir os elementos mal amarrados e mal resolvidos com os necessários implícitos de que toda (boa) narrativa não deve abrir mão. Mas este é Os 12 Trabalhos: dirigido com firmeza, mas com roteiro frouxo.

O ponto mais nevrálgico de toda esta questão é que não adianta colocar uns “toques” mitológicos para dar “ares” mais “cults” ao filme (é isso o que parece). É preciso trabalhar mais, com mais densidade e profundidade, e sobretudo com mais coerência (seja interna, seja externa, ou seja, mais de acordo com o mito original) as bases míticas da história, assim como quaisquer outras referências, citações e intertextualidades de que se carregue uma obra. Em tudo isso, Os 12 Trabalhos é bem pouco orgânico. Parece artificial e banal. Parece Matrix Reloaded e Matrix Revolutions. Para que apelar ao mito? Só para mostrar o heroísmo do jovem pobre em sua luta vital e diária? Essa idéia poderia ser transmitida melhor sem precisar recorrer de modo superficial e banalizante a referências “cultas”. Se se quer colocar elementos “cultos” em um filme, que se faça isso de modo denso (mas não desnecessariamente complicado, pois isso já seria esnobismo), alta e multiplamente significativo, e (de novo o mais importante) com coerência.

Para encerrar: Orfeu Negro (Fra, Bra, Ita, 1959, dir.: Marcel Camus) e O Pagador de Promessas (Brasil, 1962, dir.: Anselmo Duarte) são os dois grandes exemplos do que este Os 12 Trabalhos poderia ter sido, o primeiro se aproximando da mitologia clássica, o segundo tendo por base a mitologia cristã. Nesses dois clássicos do cinema, a densidade e a universalidade do mito trabalha por alçar o particular a esferas maravilhosas, ao mesmo tempo em que o particular concede dimensão humana, real e sensível ao mito. Se as aventuras de “Héracles” tivessem apenas 10% desse caráter...

Um comentário: