Páginas

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Aula de Cinema


Das entrevistas de Truffaut com Hitchcock:

Truffaut: É, é isso; nos últimos anos do cinema mudo, os grandes cineastas, e até mesmo a produção como um todo, haviam chegado a uma certa perfeição, que foi comprometida, pode-se pensar, pela invenção do falado. Talvez se possa afirmar que a mediocridade voltou com força no início do falado, quando na verdade ela estava sendo eliminada aos poucos, no final do cinema mudo, graças à distância crescente entre a qualidade do trabalho dos bons diretores e a insuficiência de expressão dos outros diretores.

Hitchcock: Estou totalmente de acordo e, a meu ver, isso é verdade ainda hoje, pois na maioria dos filmes há pouquíssimo cinema; na maioria das vezes, chamo a isso de “fotografia de pessoas que falam”. Quando se conta uma história no cinema, só se deveria recorrer ao diálogo quando fosse impossível fazer de outro jeito. Sempre me esforço em procurar primeiro a maneira cinematográfica de contar uma história, pela sucessão dos planos e pelos fragmentos de filme postos entre eles. O que se pode deplorar é o seguinte: com o surgimento do falado, o cinema se imobilizou abruptamente numa forma teatral. A mobilidade da câmera não muda nada nisso. Ainda que a câmera se desloque ao longo de uma calçada, é sempre teatro. O resultado é a perda do estilo cinematográfico, e também a perda de toda a fantasia.
Quando se escreve um filme, é indispensável separar nitidamente os elementos de diálogo e os elementos visuais e, sempre que possível, dar preferência ao visual e não ao diálogo.

(...)

Sobre Janela Indiscreta:

Truffaut: Desse ponto de vista, a exposição do filme é excelente. Inicia-se com o pátio adormecido, depois passamos para o rosto de James Stewart suando, pela perna engessada, depois por uma mesa sobre a qual se vêem a máquina fotográfica quebrada e uma pilha de revistas e, na parede, fotos de carros de corrida capotando. Unicamente com esse movimento de câmera somos informados de onde estamos, quem é o personagem, qual é a sua profissão e o que aconteceu com ele.

Hitchcock: É a utilização dos meios oferecidos pelo cinema para contar uma história. Isso me interessa mais do que se alguém perguntasse a Stewart: “Como você quebrou a perna?”. Stewart responderia: “Estava fotografando uma corrida de automóveis, uma roda se soltou e veio bater em mim”. Não é? Seria uma cena banal. Para mim, o pecado capital de um roteirista é, quando se discute uma dificuldade, escamotear o problema dizendo: “Justificaremos isso com uma linha de diálogo”. O diálogo deve ser um ruído entre outros, um ruído que sai da boca dos personagens cujos atos e olhares contam uma história visual.


O poeta Carlos Drummond de Andrade diz:

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
trouxeste a chave? (Procura da Poesia)

Penetra surdamente no reino das imagens... eis uma lição aos cineastas. Por mais complexas que sejam as diferentes formas de arte, o trabalho com o meio de expressão específico e mais essencial de cada uma é o que produz as obras mais comoventes e significativas.

No cinema, a maior delícia que se tem ao ver um filme é dada pela fotogenia única das imagens em movimento, organizadas numa composição que seja a mais significativa de acordo com as idéias que essas mesmas imagens procuram transmitir. A cena acima referida de “Janela Indiscreta” é um dos melhores exemplos até hoje.

O livro das entrevistas de Hitchcock a Truffaut vale por um curso completo de cinema.

Nenhum comentário:

Postar um comentário