Ao sugo
Dentre os
melhores exemplos da moderníssima antropofagia cultural, fora dos territórios
tupiniquins, está a maneira como cineastas italianos se apropriaram de gêneros
tradicionais do cinema de Hollywood. A história da sétima arte enriqueceu muito
com as obras-primas do western spaghetti
de Sergio Leone (como se dizia antigamente: “bang-bang à italiana”) e com o
terror/suspense/policial giallo de
Dario Argento e Mario Bava. Entre os anos 60 e 70, o sucesso artístico e
comercial desses estilos foi tão grande, que chegaram mesmo a retroalimentar a
produção californiana: sem eles, dificilmente teríamos um Sam Peckinpah ou um
Wes Craven.
Mas tudo isso já
é bem sabido. Agora, as criaturas esquisitas que habitam as fossas abissais da
produção cinematográfica mundial e ainda esperam (ou não) por seu Jacques
Costeau são os filmes do “sci-fi spaghetti” (o termo circula na web). Entre a década de 70 e 80, muitos
diretores italianos tentaram se impulsionar no forte deslocamento de ar
provocado pelas maiores realizações da ficção científica hollywoodiana do
período, de Star Wars (1977) e Alien (1979) a Fuga de Nova York (“Escape From New York”, 1981), Mad Max (a trilogia: 1979, 1981, 1985) e
Robocop (1987).
Quem foi criança
ou adolescente na época há de se lembrar com carinho, ainda que vagamente, de
pérolas como Os Caçadores de Atlântida
(“I Predatori di Atlantide”, 1983, de Ruggero Deodato) e Keruak, O Exterminador de Aço (“Vendetta dal Futuro”, 1986, de
Sergio Martino). Tais filmes são clássicos das velhas sessões da tarde ou das
22 hs., no SBT (na época, TVS) ou na extinta TV Manchete. E são, sobretudo,
paradigmas do baixo orçamento, filmes B na acepção mais orgulhosa do termo. No
geral, apresentavam-se como versões genéricas dos grandes sucessos
hollywoodianos supra-citados, com efeitos especiais deliciosamente sofríveis e
roteiros que são um verdadeiro suplício.
Imperam a
incoerência, a inverossimilhança paroxística, a confusão narrativa, nos
diálogos (pronunciados em inglês por atores norte-americanos sempre
desconhecidos) e na montagem. Além do exagero: na trilha sonora, na atmosfera,
na “seriedade” das histórias e dos temas, que, no final das contas, só leva o
espectador a rir. Em uma palavra, o estilo camp,
famoso também nos EUA, com os “midnight movies”, a exploitation... Enfim, são filmes que, de tão ruins, ficam bons,
ainda mais quando se tornam documento de uma época (na história, no cinema), ou
entram para a memória afetiva dos espectadores que vão se distanciando cada vez
mais da infância. A cobra morde a própria cauda.
Talvez o mais
peculiar de todos os sci-fi spaghettis
seja Herdeiros da Morte (“Stridulum” –
em inglês: “The Visitor” –, 1979), dirigido por Giulio Paradisi, que assina como
Michael J. Paradise – procedimento comum entre os realizadores do gênero. Por
um lado, este filme preserva todas as características básicas da ficção
científica “à italiana” acima enumeradas; por outro, tenta algumas ousadias que
deixam o público (e o crítico) com a pulga atrás da orelha. Tentar entender, de
maneira unívoca, a premissa e a identidade estilística deste longa-metragem já
é o começo de uma muito divertida aventura. Vamos lá.
Imagine um grande
“mash up” entre os seguintes clássicos: A
Profecia (“The Omen”, 1976, com elementos de O Exorcista – “The Exorcist”, 1973), O Bebê de Rosemary (“Rosemary’s Baby”, 1968), Os Pássaros (“The Birds”, 1963) e Contatos Imediatos do Terceiro Grau (“Close Encounters of the Third
Kind”, 1977); tudo isso temperado com filmes de Alejandro Jodorwsky: El Topo (1970) e The Holy Mountain (1973). Já dá, quem sabe, para começar a fazer
uma certa ideia. Mas, até aí, os sci-fi
spaghettis costumam ser essa salada mesmo de referências, influências,
plágios, etc.
O primeiro
grande diferencial de Herdeiros da Morte está
em seu elenco, que ostenta nomes pesados como os de Glenn Ford, Lance Henriksen,
John Huston (sim, o grande diretor), Sam Peckinpah (sim, o grande diretor) e Shelley
Winters, além de um não-creditado Franco Nero interpretando uma espécie de
Jesus Cristo cósmico... O que é que todos eles estão fazendo aqui é daquelas
perguntas indiscretas que talvez seja melhor deixar para lá. Curiosidade: o
diretor, Giulio Paradisi, tem no currículo nada menos que o 8 e meio de Federico Fellini (como
diretor-assistente).
E quanto ao
enredo? Bem, depois de ver o filme duas vezes e pesquisar bastante na web, eis o que é possível deduzir (a
narrativa é mesmo bastante confusa, dizem que por causa dos cortes na montagem
impostos para o lançamento nos EUA). Há muito tempo atrás (em uma galáxia
muito, muito distante?), havia um ser que era a própria encarnação da maldade e
do poder. Ele se chamava Sateen. Após uma terrível guerra interestelar, Sateen
foi finalmente capturado pelo comandante Yemen. Porém, durante o transporte
para a prisão, ele fugiu e veio parar no velho planeta Terra, onde (por algum
motivo) nunca mais foi incomodado.
Antes de enfim
morrer, Sateen tomou a precaução de fertilizar o maior número de mulheres
possível, para espalhar e perpetuar seus genes mutantes e super-poderosos (além
de sua infinita maldade) por incontáveis gerações futuras. Desde então, os
descendentes do heroico comandante Yemen (que parecem formar uma seita à lá
Charles Manson) se dedicam muito monasticamente a vigiar, em segredo, a espécie
humana, prontos para detectar e eliminar os frutos de Sateen (que costumam ter
poderes telecinéticos). O alvo, na era contemporânea, é uma menina de oito
anos, muito malcriada, chamada Katy.
John Huston psicodélico. |
O trabalho de
espioná-la e fazer o que for necessário, quando chegar o momento, fica para
Jerzy Colsowicz (John Huston, que assume o papel com firmeza e carisma), uma
espécie de Gandalf, O Cinzento cósmico, que comanda um grupo de acólitos
carecas treinados pelo “Jesus Cristo” cósmico (Franco Nero – o personagem não
tem nome). Enquanto isso, na sociedade humana, um grupo secreto de distintos
cavalheiros tem como missão fazer de tudo para proteger os descendentes de
Sateen e garantir que cheguem ao poder (supremo). Mas tais cavalheiros não
admitem Katy, preferem um anti-messias masculino.
Assim, o plano é
fazer com que a mãe de Katy se case com Raymond Armstead (Lance Henriksen), um
noviço na seita, e tenha com ele o tão esperado rebento macho. O problema é que
ela não quer assumir compromisso com ele; mesmo assim, só pode haver a
fecundação após casamento (!). Shelley Winters vive uma babá de Katy (na
verdade, ela é uma espiã disfarçada, enviada pelo Jesus Cristo extra-terrestre),
Glenn Ford interpreta um detetive que vai investigar as maldades da jovem, e
Sam Peckinpah um médico amigo da mãe da menina (o qual a ajudará num momento
difícil da trama).
Jesus "Django" Cristo e seus padawans skinheads. |
Como se pode
ver, trata-se de uma premissa e tanto, que faz o espectador surfar num
comprimento de onda que vai de Roman Polansky a Steven Spielberg. Pena que essa
premissa seja conduzida e desenvolvida, ao longo do filme, por uma narrativa
que vai se acertando aos tropeços: muito do que está lá não precisaria estar,
ao passo que coisas fundamentais ficam de fora, ou são muito pouco trabalhadas:
os buracos são imensos, é de provocar risos. Realmente, seria interessante
saber se existe mais material filmado que pudesse ajudar na digestão dessa
história.
De qualquer
maneira, os resultados estilísticos são muito mais interessantes. O filme abre
com uma cena absolutamente psicodélica, entre o personagem de Huston e a menina
Katy, envolvidos num tipo de tour de
force de proporções cósmicas, em uma paisagem que pode tanto ser um deserto
alienígena, quanto um plano mental, astral, transcendental: verdadeiro cenário
de um Salvador Dalí sob efeito de ácido lisérgico... Parte desse surrealismo
voltará na batalha final, com o acréscimo de uma revoada de pássaros assassinos
à lá Hitchcock (descontando-se, naturalmente, os efeitos especiais toscos, que
revelam a identidade B deste filme).
Lance Henriksen em "os Pássaros" à italiana. |
De resto,
tirando-se os efeitos apetitosos do estilo camp,
Herdeiros da Morte apresenta duas
outras cenas dignas de memória e que revelam uma maturidade cinematográfica por
parte do seu diretor que não se vê todo dia. Na primeira, temos uma fina ironia
transmitida através da montagem em uma bela rima visual: Katy está treinando
exercícios de ginástica olímpica nas barras, completamente despreocupada,
depois de ter baleado (acidentalmente?) a própria mãe pelas costas; após um close nas mãos da menina segurando a
barra, corta-se para as mãos da progenitora, no hospital e paraplégica,
segurando uma barra suspensa para se levantar da cama.
Mas a segunda
cena é ainda mais interessante, pois aqui o achado estilístico estará a serviço
de um comentário político-social surpreendentemente subversivo, digno dos
melhores filmes de Samuel Fuller. A mãe de Katy vai até um hospital, não
público, porque não existe isso nos EUA, mas um hospital que, visivelmente,
atende prioritariamente a população das classes mais baixas. Ela é rica, mas
está à procura de um médico amigo seu, para pedir uma ajuda que será essencial
para a conclusão da trama. Esse médico é Sam Peckinpah, vestido de jaleco
branco e botas de cowboy (!).
Ele se
surpreende de vê-la ali (faz tempo que ambos não se encontram) e lhe pergunta,
com aquela ironia amiga, o que ela pode desejar de um pobre médico tão ocupado
atendendo em um hospital tão mal equipado, ele que mal poderia passar pelas
portas dos hospitais sofisticados a que ela tem acesso, justamente ela que normalmente
gosta de circular entre gente tão “bonita”... A sabedoria do cineasta é:
enquanto Peckinpah diz essas coisas (sua voz em off), há um corte na edição e vemos a câmera se aproximar em travelling, até chegar num close, de um homem negro balançando
nervosamente nos braços um bebê desacordado, nos corredores – já havíamos visto
esse mesmo homem logo antes, assim que a mãe de Katy entra no hospital.
Um grande diretor faria deste um grande filme, pois multiplicaria e
espalharia momentos como o acima descrito por toda a sua extensão, além de
integrá-los em uma narrativa orgânica que transformaria o próprio plot principal em uma alegoria
inquietante, forçosamente relativizando a luta do “bem” contra o “mal”. É o que
vemos na saga Star Wars (tomando os
seis episódios em conjunto, até agora), em O
Bebê de Rosemary, em Alien, em Robocop, em Fuga de Nova York... Mas, tanto quanto se pode dizer a respeito de sci-fi spaghettis, Herdeiros da Morte é um filme bastante sofisticado até. Vale a pena
dar uma espiada.