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sexta-feira, agosto 24, 2012

Sobre imagens e boas intenções


O filósofo Jean Baudrillard sobre o fotógrafo Sebastião Salgado (agradeço a Wanderson Lima, do Epigramas e Epitáfios, pelo texto):

Ele é admirável se quisermos, mas suscita o problema do voyeurismo sociopolítico. A sua fotografia trata do humanismo da miserabilidade. Tudo isso me provoca um problema quase moral que não tenho vontade de resolver. É a foto-testemunho sobre a qual escrevi também algumas páginas. E aqui igualmente é preciso voltar a Barthes, pois o testemunho é o fim da fotografia. Ele inscreve uma idéia, uma verdade, ele não fotografa o que é, mas o que não deveria ser. Isso é uma posição moral de denegação. Se esta é uma foto moralizante, em relação à própria imagem ela é um contra-senso. Seria preciso que a imagem pudesse estar lá por sua especificidade e não curto-circuitada por uma idéia moralista, histórica… (BAUDRILLARD, Jean. Entrevista a Sheila Leirner. In República. São Paulo: D’Ávila Comunicações, Abril, 1999.)

Sebastião Salgado, apesar de toda a fama e prestígio, sempre foi alvo de críticas como a que vemos acima, às vezes associadas à denúncia de uma autopromoção que animaria, para além dos limites do bom-tom, o projeto de arte fotográfica do ex-economista. Em outras palavras, o “voyeurismo sociopolítico” de que fala Baudrillard se pavimenta sobre a distância intransponível entre a posição social do fotógrafo-artista (assim como a do seu público: uma elite urbana frequentadora de exposições e compradora dos caríssimos foto-livros) e a posição social do objeto-assunto de seu trabalho (aquele outro, sempre pitoresco, sempre exótico, quase reificado enquanto objeto de contemplação estética ou de “reflexão” política / antropológica / sociológica: o sem-terra, o sem-teto, o garimpeiro, o nativo, o aborígene, etc). Exótico = o que vem de fora.

Associe-se isso aos procedimentos estilísticos de Salgado. Em primeiro lugar a estetização, carregada e desprovida de qualquer sutileza, com que o fotógrafo trata o seu ofício, o que leva os críticos a falarem na “cosmética da fome” (que também atormenta o cinema brasileiro). O estetismo de Salgado, além da possibilidade de ser por si só questionável, se considerarmos tão-somente a “arte pela arte”, também não o seria sob o princípio da adequação forma-conteúdo? O que será que Rodrigo S. M. (o narrador fictício de “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector) teria a dizer a respeito do método de Sebastião Salgado? Vejamos o que ele diz a respeito de sua própria composição e, principalmente, da personagem retratada (a semi-miserável Macabéa):

Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases. É claro que, como todo escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que palavra é ação, concordais? Mas não vou enfeitar a palavra pois se eu tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro – e a jovem (ela tem dezenove anos) e a jovem não poderia mordê-lo, morrendo de fome. Tenho então que falar simples para captar a sua delicada e vaga existência. (LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p.14-15.)

A fotografia de Salgado não seria enjoativamente “suculenta”? Isso nos faz ter saudades do “estilo-cacto” de Graciliano Ramos em “Vidas Secas” (nas palavras do poeta João Cabral de Melo Neto) e do estilo igualmente “cacto” das suas imagens na versão cinematográfica de Nelson Pereira dos Santos. De qualquer maneira, os problemas de se buscar (ou não) o encontro com o outro referente da elaboração artística nunca são de soluções fáceis, o que já elimina quaisquer posturas que se queiram radicais: no limite, a única arte perfeitamente adequada ao que “não deveria ser” (nas palavras de Baudrillard) seria a arte alguma. Não queremos permitir que a fotografia encontre o seu fim através do testemunho, como quer o filósofo; talvez não seja possível higienizar a fotografia, enquanto construção discursiva, do “curto-circuito” das ideias moralistas ou históricas. Toda fotografia é moralizante, por isso, toda imagem é um contra-senso, de fato.

Mas pode ser estabelecido um limite para esse fetichismo inerente ao olhar fotográfico. A linha será desesperadoramente tênue, mas ainda assim visível. O ponto de discórdia é que fotógrafos como Sebastião Salgado nitidamente a rompem. Inescrupulosamente. O pão-imagem dos pobres torna-se ouro no processo fotográfico de Salgado e percorrerá galerias de arte, museus e livros luxuosamente editados para gente de bolsos bem costurados e consciências político-estéticas bem nutridas. A mais recente ilustração dessa cena saiu hoje, em reportagem da Folha de S. Paulo sobre o destino da menina sem-terra que virou ícone na obra do fotógrafo. Joceli Cruz Borges dos Santos, hoje com 21 anos, ainda vive em um acampamento do MST e possui dois sonhos: 1. Receber um pedaço de terra; 2. Receber dois exemplares do livro “Terra”, de Sebastião Salgado, do qual ela é capa (um para si mesma, outro para o pai – a mãe foi assassinada).

Irônico? Não seria este um belo exemplo do “pão de ouro” de que fala Clarice Lispector? Não obstante, a prova mais cabal do supra-citado voyeurismo sociopolítico pode ser vislumbrada quando Joceli diz:

Não vi ele me fotografando. Parece que estou olhando para a foto, mas não lembro de ver alguém me fotografando. Nem minha família lembra o local exato onde foi. Fiquei sentida por sair toda desarrumada. Mas fico feliz pelo meu pai e minha mãe ter conquistado a sua terra.

Eis a “posição moral de denegação” em um foto “que não deveria ser”. É claro que, aos olhos sociopoliticamente treinados de Salgado e do seu público, tal imagem deveria muito bem “ser”: a particularidade da figura toda desarrumada da menina está lá apenas para demonstrar a totalidade e o alcance da realidade social observada, assim como as teorias usadas para interpretá-la (a jovem Joceli é a “coitada”: oprimida, excluída, miserável, sem-terra, por isso, maltrapilha). A inteligentzia agradece. Faz-se com isso fotografia “de tese”, que não forçará menos a barra do que o cinema de tese ou os velhos romances de tese positivistas que tanto excitavam as taras cientificizantes da belle époque. Mais uma vez: o mundo, a vida e o ser tornam-se desindividualizados e escravizados por uma ideia – crime capital de todo e qualquer discurso que se pretenda artístico.

A imagem precisaria existir por sua “especificidade”, diz para nós Jean Baudrillard. Neste caso, precisaria haver um encontro real e humano entre o eu do fotógrafo e o outro do fotografado, através da sensibilidade do primeiro em reconhecer que ninguém gostaria de ser retratado parecendo “feio”, “desarrumado”, etc. Neste caso, é em tal sentido, especificamente, que Sebastião Salgado fotografou o que “não deveria ser”. E nisto, atropelou por completo a subjetividade, a dimensão, a humanidade de um outro – o qual, no entanto, também somos nós, ainda que tão difícil de reconhecer. Ao percorrer com os olhos os álbuns temáticos de Salgado (trabalhadores, sem-terra, etc), não conseguimos deixar de nos lembrar, ainda que vagamente, dos velhos zoológicos etnográficos, apenas em uma versão mais sofisticada: o livro de fotografias e a exposição em galerias ou museus são os novos “cercadinhos” para a contemplação curiosa do “exótico” por parte dos civilizados. Essa lembrança incomoda. Mas é de confessar, mais uma vez, que se trata de uma problemática com soluções difíceis – quando não impossíveis: a imagem contra-senso e o testemunho que é o fim da fotografia.

*

A fotografia de Sebastião Salgado busca, sistematicamente, efeitos emotivos fáceis, condescendentes. E não há qualquer sutileza neste aspecto. Salgado é como um mau poeta. Ou um poeta inexperiente. Além disso, o programa político-social da arte do fotógrafo reduz o indivíduo humano, excessivamente, ao tipo (eis o “humanismo da miserabilidade”). O retrato do tipo e de tudo o que é típico pode se tornar uma armadilha já bastante conhecida pelos escritores, desde a consolidação do romance (meados do século XIX). Nas artes plásticas, os grandes mestres da pintura buscam, desde o Renascimento, a verdade psicológica no indivíduo a ser retratado, para além de sua posição, funções ou convenções sociais. Quanto à fotografia, bem, retratistas como Sebastião Salgado ainda titubeiam no escuro...

Em contrapartida, vejamos o que diz o curador-chefe do MoMA de Nova York a respeito de uma foto muito famosa de Henri Cartier-Bresson:

À medida que a celebridade de Cartier-Bresson cresceu ao longo dos anos 1950 e 1960, não foram poucas as fotos mais fracas que entraram no seu catálogo de popularidade. O mesmo aconteceu com outras que se inclinavam para o domínio do sentimentalismo ou simplesmente nele mergulhavam – como o famoso flagrante de um garotinho que marcha orgulhoso pela rue Mouffetard com duas garrafas de vinho tinto.

Nos anos 1970, quando o mercado para fotografia encarada como arte estava crescendo, Cartier-Bresson começou a ter sucesso em seus esforços para vender cópias para colecionadores. Em 2003, Helen Wright, que fora sua agente americana para essas vendas por muito tempo, foi entrevistada para uma matéria sobre as fotos mais procuradas. Ela explicou que a do menino da rue Mouffetard

“é solicitada com tanta frequência que Henri está quase a ponto de se recusar a assiná-la e enviá-la para mim. (...) Os norte-americanos parecem simplesmente adorar essa foto. O motivo é muito simples, eu acho: é que eles a consideram muito francesa”.

Cartier-Bresson acabou passando a lamentar a popularidade da foto e se recusou a permitir novas reproduções. (GALASSI, Peter. Henri-Cartier Bresson: o século moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2010. p. 56)

É engraçado pensar em como uma parcela pequena da obra de um fotógrafo, que sabiamente a renegou, pode se tornar o carro-chefe da obra de outro fotógrafo. Fica a conclusão – que pode muito bem valer como um elogio: o melhor do trabalho de Sebastião Salgado é o pior do trabalho de Cartier-Bresson. Biscoito fino, de qualquer maneira.

quarta-feira, maio 23, 2012

Um Método Perigoso


Mentes Escaneadas

Eu queria conhecer as opiniões de Freud acerca da precognição e da parapsicologia em geral. Quando fui vê-lo em 1909, em Viena, perguntei-lhe o que pensava sobre isso. Fiel a seu preconceito materialista, repeliu todo esse complexo de questões, considerando-as mera tolice. Ele apelava para um positivismo de tal modo artificial que precisei conter uma resposta cáustica. Alguns anos decorreram antes que Freud reconhecesse a seriedade da parapsicologia e o caráter de dado real dos fenômenos “ocultos”.

Enquanto Freud expunha seus argumentos, eu tinha uma estranha sensação: meu diafragma parecia de ferro ardente, como se formasse uma abóbada ardente. Ao mesmo tempo, um estalido ressoou na estante que estava a nosso lado, de tal forma que ambos nos assustamos. Pensamos que a estante ia desabar sobre nós. Foi exatamente essa a impressão que nos causou o estalido. Eu disse a Freud: “Eis o que se chama um fenômeno catalítico de exteriorização.” “Ah”, disse ele, “isso é um puro disparate!”

“De forma alguma”, repliquei, “o senhor se engana, professor. E para provar-lhe que tenho razão, afirmo previamente que o mesmo estalido se reproduzirá”. E, de fato, apenas pronunciara estas palavras, ouviu-se o mesmo ruído na estante.

Ainda hoje ignoro de onde me veio esta certeza. Eu sabia, porém, perfeitamente, que o ruído se reproduziria. Então, como resposta, Freud me olhou, horrorizado. Não sei o que pensou, nem o que viu. É certo, no entanto, que este acontecimento despertou sua desconfiança em relação a mim; tive o sentimento de que lhe fizera uma afronta. Nunca mais falamos sobre isso. (JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões. 1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 190-191)

A cena acima é extraída da autobiografia de C. G. Jung e se encontra reproduzida tal qual em Um Método Perigoso (“A Dangerous Method”, Reino Unido / Alemanha / Canadá / Suíça, 1022), o filme mais recente de David Cronenberg. Já se podem reconhecer nela os campos minados do cérebro pensante e as relações com os seus maiores “inimigos” – o corpo e o mundo dos objetos – temática que esteve sempre presente na obra do diretor, não raro adotando expressões de extrema violência, no grotesco de mutilações, metamorfoses e fetiches: o bizarro esticado às raias do surreal.

Neste ponto, verdade seja dita, Um Método Perigoso baixa o tom em relação a Os Senhores do Crime (“Eastern Promises”, 2007) e Marcas da Violência (“A History of Violence”, 2005), exemplos da produção mais recente de um autor maduro, mas ainda inspirado. No entanto, os fãs do Cronenberg mais hypado pela crítica não precisam desgostar (muito) deste filme que é quase um teatro filmado – no bom sentido. Pois estão lá, ainda que no fundo e com sutileza, as velhas preocupações do cineasta, desde a primeira cena, em que vemos uma Keira Knightley histérica sendo transportada para o sanatório onde atende o jovem Dr. Jung (interpretado pelo grande Michael Fassbender).

A personagem dela é Sabina Spielrein, que entrará num relacionamento amoroso tenso (além de adúltero) com o pai da psicologia analítica. Tudo baseado em conhecidos fatos reais; porém, a história não será contada à moda folhetinesca de Jornada da Alma (“Prendimi l’Anima”, 2002, de Roberto Faenza). Cronenberg fará com que o drama se exerça de maneira rigorosa, severa, carregando, no fundo e no final das contas, um comentário irônico e um tanto quanto iconoclasta em relação a duas figuras míticas de um século cujo empenho-mor foi a derrubada de todos os mitos.

Os heróis da era da ciência já não são Hércules, Teseu, Perseu ou Aquiles; tampouco Noé, Moisés, Davi ou Jesus. Nossos profetas, xamãs e guias são cientistas. Em especial Sigmund Freud (vivido aqui por Viggo Mortensen), paladino do materialismo contemporâneo, como seu ex-discípulo faz questão de esclarecer no texto acima. Mas o conhecimento material não tem nada de heroico; ele vai se formando e transformando  à base de diferenças entre pontos de vista, egos, vaidades. As idiossincrasias pessoais, intransigentes, batem-se de parte a parte: de um lado, o Freud que não aceita um discípulo que tenha ideias próprias (quanto menos, metafísicas); do outro, um Jung que não pode aceitar a existência do mero acaso.

No final, os dois não passarão de objetos típicos dos próprios métodos de análise psicológica que elaboraram. Freud será estudado e diagnosticado por Jung, e este o será por Sabine – já “curada” e tornada ela própria psicóloga – no memorável diálogo que encerra o filme e que abandonará o criador da teoria dos arquétipos num estado de desamparo, confusão e estupefação quase infantil. Humano, nada mais do que humano. É claro que nada disso faz por diminuir o valor e a importância da enorme contribuição que os dois maiores psicólogos do século XX trouxeram para o patrimônio do conhecimento da espécie.

Mas Um Método Perigoso, que é essencialmente um filme de diálogos, extrai a sua força de um brainstorm e de mind games que colocam em perspectiva os fundamentos da concepção intelectualizante que a civilização moderna (e pós-moderna) faz do ser, da vida e do mundo. Freud e Jung, cada um à sua própria maneira e segundo as próprias crenças (ou descrenças), são as primeiras vítimas dessa racionalização prolífica de neuroses. No final de tudo, quem sai engrandecida dessa história é Sabine Spielrein – ao contrário da vitimização constrangedora que a personagem sofre no filme de Faenza.

Lembremos que ela morre nas mãos do nazismo, fato que Cronenberg, sabiamente, escusa-se de mostrar, apenas referindo a ele nos letreiros finais. Sabine é o sexo forte, que extrai da sua loucura e da sua intuição a sabedoria vital que falta às duas das maiores mentes do século. Enfim, Um Método Perigoso é receitado tanto a freudianos quanto a junguianos, tanto pelas vitórias quanto pelos fracassos dos seus ídolos – entendidos como figuras biografáveis, pois Cronenberg está pouco interessado em discutir o mérito de teorias e tratamentos psicológicos, ao contrário do que o título do filme pode levar erroneamente a acreditar. Mas, então, eis uma nova ironia...

segunda-feira, maio 21, 2012

Drive



Até o último fôlego

Drive (EUA, 2011) é um passo importante no reconhecimento do cineasta dinamarquês Nicolas Winding Refn. Ganhou o prêmio de melhor diretor em Cannes, tendo sido indicado também à Palma de Ouro. Refn já vem sendo acompanhado há algum tempo pela crítica internacional. Quanto à brasileira, que acaba de descobri-lo... Enfim, o tom geral do que se leu em jornais e revistas nacionais a respeito do lançamento de Drive era: “bom diretor, na linha de Tarantino”, ou então: “mau diretor, imitador de Tarantino”. Limitação de repertório é doença grave, pessoal. Eis os fatos: Refn é, praticamente, da mesma geração de Quentin Tarantino: Drive já é o nono longa-metragem do cineasta, que iniciou a carreira no longínquo 1996, com Pusher (só recentemente lançado em DVD no Brasil).

Agora, uma crítica negativa que se pode fazer a ele é a mesma que servirá de carapuça (quem tiver coragem de aplicá-la) ao autor de Kill Bill: seus filmes são uma série de “mash-ups” nos quais se encontram arrolados e passados a ferro, sistematicamente, os ídolos do “jovem” diretor e os filmes que o levam, muito provavelmente, a se morder de inveja de ter criado (lembremos que a nova “empreitada” de Tarantino, atualmente, é um western). No entanto, há uma boa diferença aí: Nicolas Refn é mais sutil nas intertextualidades, o que concede aos seus longas um ar de menor submissão às fontes inspiradoras. De qualquer maneira, vivemos nos tempos do “vintage”, não? Coisa chique!

Drive já abre com o estilo “Miami Vice” dos créditos em rosa-shocking, enquanto a sequência inicial emula a passo firme as fitas de car chase dos anos 60 / 70, como Bullitt (1968) e Vanishing Point (1971). E também não nos esqueçamos de jogar no caldeirão os polêmicos games do gênero de Grand Theft Auto (GTA) e Driver, que muito ajudaram a definir a geração dos jogos eletrônicos dos anos 2000. Tudo isso marca o retorno de Refn ao estilo gangsta das suas primeiras produções, como o já citado Pusher (que teve mais duas continuações), além de Bleeder (1999). Ficam na geladeira, por ora, a poesia surrealista de Medo X (“Fear X”, 2003), a poesia satírica de Bronson (2008), e a poesia épica de O Guerreiro Silencioso (“Valhalla Rising”, 2009).

Apesar de Drive não ter sido roteirizado pelo próprio diretor (o que é incomum em sua carreira), e de esta não ser a sua melhor obra até o momento (na opinião do autor de Sombras Elétricas, tal título será dado a Medo X), o filme contribui para firmar uma temática bem cara ao cineasta: que é aquela do velho “a bout de souffle” de Godard. Os protagonistas de Refn são homens sérios e ridículos ao mesmo tempo. Em alguns momentos são pacíficos, quase “zen”; em outros, explodem numa descontrolada orgia de violência e sangue. Por que isso? Trata-se de homens acuados, acossados: pobres-diabos que, assim como animais selvagens, uma vez encurralados, tornam-se particularmente perigosos.

Eis o anti-herói inominado de Drive (Ryan Gosling). Não apenas a sua identidade, mas a sua própria existência é vaga, em constante ameaça de extinção absoluta (como se houvesse muito o que extinguir), o que faz com que o jovem mecânico e dublê de cenas de ação com automóveis em Hollywood (a profissão já é simbólica para o personagem underdog – o “perdedor”, o “bode-expiatório”, o “bucha-de-canhão”), além de motorista de heist jobs (roubos armados) nas horas vagas, permaneça em constante movimento, sem attachments (apegos, afetos, responsabilidades de longo prazo), pois ele sabe que são bem perigosos, comprometedores.

No entanto, é claro que ele vai, imprudentemente, quebrar a própria regra, ao tentar ajudar o marido da mulher por quem se apaixona (Carey Mulligan), o qual tem contas a pagar no submundo – ele é ex-presidiário. Na tentativa de preservar a unidade de uma família já bastante fragilizada (a esposa e o filho pequeno já estão a sofrer ameaças), o motorista sem nome, mas de bom coração (não, ele não é um misantropo completo), decide prestar os seus talentosos serviços, gratuitamente. Mas, já se sabe como as coisas funcionam (ou melhor, não funcionam) nos filmes: o que era para ser um trabalho simples, rápido e definitivo toma um outro rumo, e o driver terá que se virar e revirar para se desenrolar da situação, até o último fôlego.

sábado, maio 19, 2012

Shame



Vergonha e Castigo

Contrariando um pouco certos lugares-comuns, é preciso dizer que Shame (Reino Unido, 2011, direção: Steve McQueen) não é, exatamente e tão somente, uma história sobre compulsão sexual. Pelo menos, não é interessante de ser vista apenas como tal, sob pena de se ativar no púlbico uma outra, e igualmente perigosa, compulsão: a sanha diagnóstica vulgar, fruto de um determinado pensamento higienista que se compraz em patologizar todas as questões mais delicadas da vida subjetiva, para assim dormirem melhor as consciências remediadas. O cinema não está na alçada de atos médicos.

É sabido que a identidade social do anormal é uma construção histórica, que vem se mantendo no transcurso da civilização à medida em que o meio identifica indivíduos que não compartilham de certas características encontradas na maior parte das pessoas, características essas que definiriam o “normal”. O comum torna-se norma. Não é para se questionarem, evidentemente, casos óbvios de saúde (pública). Mas o fato é que, por critérios dos mais variados, as peculiaridades de alguns indivíduos foram, ao longo dos séculos, muito sumariamente categorizadas como quadros patológicos, cujo paradigma mais usado é o da doença.

Assim, torna-se muito fácil ouvirmos, no burburinho da saída de uma sessão de Shame, comentários psiquiátricos de porta de boteco que sempre estão na ponta da língua, do tipo: “nossa, é doença isso!”; “esse cara (o protagonista) passou dos limites!”; dentre outros. Uma personagem como Brandon Sullivan (Michael Fassbender) pode até se encaixar um quadro médico, completamente entregue que está ao moto perpétuo de um cotidiano regado a masturbações, sexo com prostitutas, pornografia online, visitas escusas a boates gays, etc. Mas o mais importante aqui é o público (e o crítico) observarem duas coisas:

1. trata-se de uma história de ficção, ou seja, há limites a serem observados na hora de se deitarem personagens fictícias no divã; 2. a narrativa construída por Steve McQueen (diretor e co-roteirista) não enquadra sumariamente a situação de Brandon Sullivan como um mero caso de “doença”, da forma sentenciosa como faziam os romancistas do Naturalismo (século XIX), ou como fazem alguns cineastas até hoje. Uma crise existencial, uma inquietação ou trauma, mesmo o vício sexual (se colocado em relação a essas vivências mais subjetivas), dizem mais respeito ao tom do filme e à construção do seu protagonista – que é alçado aqui a uma grandeza mais poética / lírica.

Por isso, a atitude de condenar muito rapidamente Brandon Sullivan como um anormal, como um “doente” (ainda que com suposta compaixão), não passaria de uma atualização do velho moralismo que o desqualificaria como um “pervertido”. A tara higienista de hoje não difere muito, em espírito, da mentalidade das épocas em que patologias eram entendidas como possessões demoníacas. Contudo, não estamos dizendo isso para que se defenda uma postura condescendente em relação à personagem, tampouco para negarmos a existência do vício em sexo (medo que o diretor tem em relação à sociedade norte-americana, dizendo em entrevista que, se tivesse feito um filme sobre álcool ou drogas, seria mais aceito).

O importante aqui é rasparmos as camadas mais superficiais da experiência trazida por um filme e observarmos a figura de Brandon Sullivan como possível alegoria para as armadilhas e abismos da condição humana, na fenomenologia do eu, do ser / estar no mundo em relação ao outro, com todas as dificuldades envolvidas nessa interação (dentre as quais pode-se incluir o vício sexual). Acreditamos que, no fundo, seja essa a proposta do filme: vivenciarmos uma (complicada) alteridade, uma vida alheia que, não obstante, é a nossa também. E mais nossa do que gostaríamos de acreditar. Como já dizia o filósofo: “nada do que é humano me é alheio”.

O artista visual Steve McQueen (prestigiado no circuito das exposições e galerias) é de grande sensibilidade no observar as suas difíceis personagens e contar os seus indigestos dramas, como já foi bem demonstrado no premiado Hunger (2008, sua estreia em longa-metragens), sobre a greve de fome realizada por prisioneiros políticos irlandeses no início dos anos 1980. O caso de Brandon Sullivan é que este não parece possuir tanto uma compulsão por sexo quanto parece estar mais para um sujeito “perdido”. O próprio McQueen confessa ao “The Guardian”: “Brandon in Shame is my response to being lost – I've not been there in the sense of sexual addiction, but I've been lost.(Brandon, em Shame, é a minha resposta ao estar perdido – eu não tive vício por sexo, mas já estive perdido).

Um indivíduo perdido, que reconhece estar perdido, mas não consegue fazer nada a respeito. Repete, irremediavelmente, os mesmos atos vergonhosos, numa dinâmica mental de crime e culpa, enquanto sua vida sócio-emocional permanece estagnada em isolamento, em solidão, ou mesmo cada vez mais decadente: nisto se vê o elemento de tensão e desequilíbrio trazido pela irmã necessitada de Brandon (Carey Mulligan), a qual ele negligencia e maltrata sistematicamente, pois ela demanda que ele saia um pouco de seu submundo e se dedique a uma relação de fato humana, ao que ele não é capaz de corresponder – assim como não corresponde à colega de trabalho que se interessa sexualmente e de modo genuíno por ele.

Literal e figurativamente impotente, o personagem magnificamente interpretado por Fassbender vai, assim, afundando num movimento em espiral, dentro de um abismo-redemoinho de abjeção e ignomínia. Dessa forma, os movimentos sinuosos e obscuros da alma de Brandon Sullivan interessam, aqui, muito mais do que a dinâmica simples do vai-e-vem da compulsão. Um bom filme exclusivamente sobre o vício, que citemos apenas para que se ilustrem bem as diferenças, é o clássico Os Viciados (“The Panic in Needle Park”, 1971, de Jerry Schatzberg): lá se veem, nas grandiosas atuações de Al Pacino e Kitty Winn, os efeitos devastadores de um comportamento aditivo, razão única da desgraça das personagens.

Quanto a Shame, este possui uma dimensão mais dostoievskiana: Brandon Sullivan, em sua alma atormentada, é uma variação do homem do subsolo, que habita – em outras e diversas variantes – as narrativas do russo, como “Crime e Castigo” (1866), “O Duplo” (1846) e, principalmente, “Memórias do Subsolo” (1864). Sullivan não é misantropo como os outros, não odeia a sociedade que o cerca. Mas odeia a si mesmo. Retorce-se de culpa ao mesmo tempo que se apraz em chafurdar na própria lama, sem vislumbrar saída para tal círculo (vicioso?). O longo e desesperado berro que ele dá, caído de joelhos num píer de Nova York, é a sua fala mais eloquente.

Com tudo isso, parece mais pertinente o diagnóstico de que a compulsão sexual de Brandon não é tanto a causa de sua miséria quanto a sua consequência. É o caso de detectar a atividade sísmica tão intensa que há no fundo do seu ser (um personagem “perdido”), que uma vez amplificada à superfície, causa tanta destruição. Um espírito perturbado, que vaga fantasmagoricamente pela vida, assombrado pelo mundo em si, sem lograr uma relação minimamente estável e razoável com outro ser humano, é tema comum aos filmes de Bergman, de Antonioni. Sem que estes, naturalmente, reduzam ao “vício” tais inquietações. Mas Steve McQueen também não o faz. Que se calibrem, então, os instrumentos de análise do público (e do crítico).

segunda-feira, março 26, 2012

Pina


No final de Asas do Desejo (1987), lemos uma dedicatória de Wim Wenders a todos os “ex-anjos”, especialmente três: Andrei (Tarkovski), Yasujiro (Ozu) e François (Truffaut). Mas o que é que faz com que esses três cineastas clássicos sejam considerados “former angels”? Neste ponto, o espectador já deverá ter prestado bastante atenção à história de Damiel, que troca a invisibilidade e a onisciência da condição celestial, serena mas distante, pela presença carnal, pela participação afetiva na miséria, na dúvida e no amor humanos. Damiel conquista uma história. A sua própria história. Essa volúpia do viver é o que caracteriza aqueles para os quais o humano é uma escolha.

Assim, existe uma sensibilidade especial em relação à vida, ao mundo e ao ser, uma sensibilidade que se debruça com carinho e acolhimento sobre as paixões e experiências que fazem com que nossa baixa situação, de resto frágil e muito breve, seja invejada pelos próprios imortais. E o artista, este será um anjo decaído e alçado à glória agridoce da existência. Ao coro dos três já enumerados, podemos enfileirar também – além do próprio Wenders, é claro –, o igualmente clássico Jacques Tati e a recente Claire Denis (que começou a carreira como assistente do diretor alemão), só para ficarmos dentre os cineastas. Mas, naturalmente, urge que nos lembremos de Pina Bausch, bailarina e coreógrafa, falecida subitamente em 2009.

Pina (“Pina”, Alemanha / França / Reino Unido, 2011) mal se pode chamar de documentário. Seria uma profunda grosseria. Este poema audiovisual, musical, performático, em três dimensões, será antes uma elegia à revolucionária artista alemã, uma das maiores do século XX: pioneira na divulgação da dança contemporânea e no diálogo entre dança e teatro, que hoje influencia um sem-número de coreógrafos, mas que, em suas primeiras experimentações, recebeu bem pouca atenção – como qualquer arte de vanguarda. Pina Bausch também é mestra em produzir números e espetáculos nascidos da subjetividade, expressividade e vivências dos próprios bailarinos de sua companhia, a Tanztheater Wuppertal Pina Bausch.

Wim Wenders é guardião zeloso da tradição do Romantismo germânico e seus intensos (anti-) heróis, assim como Werner Herzog – embora menos trágico do que este. Ouvimos no trabalho de Pina Bausch e de seus bailarinos o eco do famoso verso do poeta Alfred de Musset (1810-1857), no poema Impromptu, em resposta à pergunta sobre o que é a poesia: “écouter dans son coeur l’écho de son génie” (escutar no seu coração o eco do seu gênio – tradução livre). A imagem profundamente romântica, e nietzcheana, do sujeito frente ao sublime aterrador e atraente, a um só tempo, é uma das mais fortes de Pina: o bailarino dançando à beira do abismo.   

Quanto à experiência do “primeiro filme de arte em 3D”, a primeira peculiaridade que se faz notar é a seguinte: André Bazin define a imagem do quadro cinematográfico como centrífuga, isto é, a câmera promove um recorte de uma realidade que transborda para muito além das margens da tela; opondo-se, dessa maneira, ao teatro, que é centrípeto, isto é, tudo o que acontece de significativo toma lugar dentro dos limites do palco, como se nada mais existisse fora deste. Muito bem. Pina nos oferece uma experiência mais teatral do que cinematográfica, no sentido em que o 3D oferece corpo e profundidade aos bailarinos atuando no cenário preparado de um palco.

O ponto de vista do espectador muda em alguns momentos: Wim Wenders também produz alguns planos mais aproximados, com a câmera “em cima” do palco; além destes, há as cenas externas, com números de dança executados em diferentes espaços, ao ar livre (pequena curiosidade: as coreografias foram definidas pelos bailarinos, e os espaços, escolhidos pelo diretor). Mas o que chama a atenção, mesmo assim, é a câmera colocada no fundo da plateia, em que vemos até mesmo as cabeças das pessoas sentadas nas primeiras fileiras e, à frente destas, um palco em perfeita profundidade. Pina é um simulador teatral.

Agora, se juntarmos a maravilha do espetáculo do teatro-dança de Pina Bausch com a maravilha do cinema, particularmente a nova tecnologia em 3D, teremos um entusiasmante e assombroso resgate das primitivas maravilhas daquelas primeiras engenhocas que tentavam realizar o prodígio das imagens em movimento. A grande contribuição de Wim Wenders e o “primeiro” filme “de autor” em 3D será a de nos fazer lembrar do encanto ingênuo de coisas como a Roda de Faraday (1830), o Zootrópio (1834), o Praxinoscópio (1877), dentre outras, com suas bailarinas perpetuamente rodopiantes. Um cinema-brinquedo. O futuro é a atualização do passado.