No final de Asas do Desejo (1987), lemos uma dedicatória de Wim Wenders a todos os “ex-anjos”, especialmente três: Andrei (Tarkovski), Yasujiro (Ozu) e François (Truffaut). Mas o que é que faz com que esses três cineastas clássicos sejam considerados “former angels”? Neste ponto, o espectador já deverá ter prestado bastante atenção à história de Damiel, que troca a invisibilidade e a onisciência da condição celestial, serena mas distante, pela presença carnal, pela participação afetiva na miséria, na dúvida e no amor humanos. Damiel conquista uma história. A sua própria história. Essa volúpia do viver é o que caracteriza aqueles para os quais o humano é uma escolha.
Assim, existe uma sensibilidade especial em relação à vida, ao mundo e ao ser, uma sensibilidade que se debruça com carinho e acolhimento sobre as paixões e experiências que fazem com que nossa baixa situação, de resto frágil e muito breve, seja invejada pelos próprios imortais. E o artista, este será um anjo decaído e alçado à glória agridoce da existência. Ao coro dos três já enumerados, podemos enfileirar também – além do próprio Wenders, é claro –, o igualmente clássico Jacques Tati e a recente Claire Denis (que começou a carreira como assistente do diretor alemão), só para ficarmos dentre os cineastas. Mas, naturalmente, urge que nos lembremos de Pina Bausch, bailarina e coreógrafa, falecida subitamente em 2009.
Pina (“Pina”, Alemanha / França / Reino Unido, 2011) mal se pode chamar de documentário. Seria uma profunda grosseria. Este poema audiovisual, musical, performático, em três dimensões, será antes uma elegia à revolucionária artista alemã, uma das maiores do século XX: pioneira na divulgação da dança contemporânea e no diálogo entre dança e teatro, que hoje influencia um sem-número de coreógrafos, mas que, em suas primeiras experimentações, recebeu bem pouca atenção – como qualquer arte de vanguarda. Pina Bausch também é mestra em produzir números e espetáculos nascidos da subjetividade, expressividade e vivências dos próprios bailarinos de sua companhia, a Tanztheater Wuppertal Pina Bausch.
Wim Wenders é guardião zeloso da tradição do Romantismo germânico e seus intensos (anti-) heróis, assim como Werner Herzog – embora menos trágico do que este. Ouvimos no trabalho de Pina Bausch e de seus bailarinos o eco do famoso verso do poeta Alfred de Musset (1810-1857), no poema Impromptu, em resposta à pergunta sobre o que é a poesia: “écouter dans son coeur l’écho de son génie” (escutar no seu coração o eco do seu gênio – tradução livre). A imagem profundamente romântica, e nietzcheana, do sujeito frente ao sublime aterrador e atraente, a um só tempo, é uma das mais fortes de Pina: o bailarino dançando à beira do abismo.
Quanto à experiência do “primeiro filme de arte em 3D”, a primeira peculiaridade que se faz notar é a seguinte: André Bazin define a imagem do quadro cinematográfico como centrífuga, isto é, a câmera promove um recorte de uma realidade que transborda para muito além das margens da tela; opondo-se, dessa maneira, ao teatro, que é centrípeto, isto é, tudo o que acontece de significativo toma lugar dentro dos limites do palco, como se nada mais existisse fora deste. Muito bem. Pina nos oferece uma experiência mais teatral do que cinematográfica, no sentido em que o 3D oferece corpo e profundidade aos bailarinos atuando no cenário preparado de um palco.
O ponto de vista do espectador muda em alguns momentos: Wim Wenders também produz alguns planos mais aproximados, com a câmera “em cima” do palco; além destes, há as cenas externas, com números de dança executados em diferentes espaços, ao ar livre (pequena curiosidade: as coreografias foram definidas pelos bailarinos, e os espaços, escolhidos pelo diretor). Mas o que chama a atenção, mesmo assim, é a câmera colocada no fundo da plateia, em que vemos até mesmo as cabeças das pessoas sentadas nas primeiras fileiras e, à frente destas, um palco em perfeita profundidade. Pina é um simulador teatral.
Agora, se juntarmos a maravilha do espetáculo do teatro-dança de Pina Bausch com a maravilha do cinema, particularmente a nova tecnologia em 3D, teremos um entusiasmante e assombroso resgate das primitivas maravilhas daquelas primeiras engenhocas que tentavam realizar o prodígio das imagens em movimento. A grande contribuição de Wim Wenders e o “primeiro” filme “de autor” em 3D será a de nos fazer lembrar do encanto ingênuo de coisas como a Roda de Faraday (1830), o Zootrópio (1834), o Praxinoscópio (1877), dentre outras, com suas bailarinas perpetuamente rodopiantes. Um cinema-brinquedo. O futuro é a atualização do passado.