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sábado, julho 30, 2011

O Mágico


Jacques Tati faleceu em 04 de novembro de 1982. O último longa-metragem do diretor / roteirista / ator tinha sido Parada (“Parade”, 1974), realizado para a TV. Em seu legado, encontramos verdadeiros patrimônios culturais da humanidade, como As Férias do Sr. Hulot (“Les Vacances de Monsieur Hulot”, 1953) e, principalmente, Meu Tio (“Mon Oncle”, 1958). Agora, eis o grande artista relembrado, ressuscitado e transfigurado em animação por Sylvain Chomet em O Mágico (“L’Illusionniste”, Reino Unido / França, 2010). O diretor do cult As Bicicletas de Belleville (2003) resolveu debruçar-se sobre um roteiro escrito por Tati, mas jamais filmado; e, segundo ele, 80% da história original foi mantida.


De fato, há bastante coisa do saudoso Sr. Hulot neste desenho animado. Acompanhando os últimos dias profissionais de um velho prestidigitador, chamado Tatischeff (que é o sobrenome de batismo de Jacques), o filme focaliza a decadência do antigo fazer artístico e o desaparecimento dos velhos mestres num mundo dominado cada vez mais pela indústria cultural e pela reprodutibilidade técnica, no final dos anos 50: bandas de rock and roll que movem pequenas multidões de fãs em histeria, imponentes aparelhos de televisão e automóveis com “rabo de peixe”, sem contar o apelo pelo consumo de roupas, sapatos e perfumes da moda, para o qual a publicidade exerce função central.


Tudo isso está bem de acordo com o conjunto de ideias de Tati, o qual nunca se deixou iludir pelas encenações do “progresso”: o final do curta-metragem Curso Noturno (“Cours du Soir”, 1967) revela isso com bastante ironia. Em seus filmes, o que sobressai é uma resistência solitária e saudosa – mas heróica – de valores humanos quase bucólicos. O Mágico deixa-se animar por tais questões: veja-se a cena em que o pobre ilusionista aguarda pacientemente o grupo de rock que não sai do palco (e quando ele finalmente entra, sobraram não mais do que alguns “gatos-pingados” na plateia).


Outros momentos significativos são a cena em que ele e sua jovem amiga Alice passam na frente de uma loja de TVs (ela para, encantada, mas ele passa reto sem dar maior atenção), a cena em que o protagonista tem que fazer as vezes de mecânico de automóveis, ou a cena em que ele aceita o emprego humilhante de manequim vivo para uma agência de propaganda. Em paralelo, vemos o drama de outros artistas tradicionais, como um grupo de acrobatas que vão trabalhar como pintores de cartazes na mesma agência publicitária, um ventríloquo que acaba alcoólatra e mendigo, ou um palhaço à beira de dar cabo da própria vida.


Todos estão bem próximos do universo de Jacques Tati, que começou sua carreira no vaudeville (teatro popular de variedades, comum no final do século XIX ao começo do XX) e deve muito do seu estilo à velha pantomima (a expressividade centrada nos gestos e na postura corporal), pela qual se liga à família dos inesquecíveis Chaplin e Keaton, dentre outros clowns. Porém, o conteúdo crítico não se coloca como predominante neste filme, sendo mesmo menor do que em outras obras clássicas do mestre francês. Isso talvez se explique pelo caráter pessoal do roteiro assinado por Tati, que seria baseado na relação tensa entre ele e uma filha sua ilegítima.


A história pretenderia ser uma tentativa de redenção por parte do pai (segundo o que depreendemos de entrevista dada pelo diretor Chomet), o que se percebe na comovente convivência entre o personagem Tatischeff e uma jovem (Alice) que decide acompanhá-lo e “cuidar” dele, que vai se tornando cada vez mais pária em suas andanças de teatro em teatro, de subemprego em subemprego. A maior parte da narrativa se concentra nos dois. E o final não é feliz; porém, é humano e consolador – prevalece a vida em sua natureza, as consequências de decisões e atitudes de cada um. Eis o peso central deste filme, ainda mais sensível do que qualquer outro de Tati e tanto quanto As Bicicletas de Belleville.


Agora, o mais triste é uma outra coisa. Por mais que a equipe de animação tenha pesquisado e se esforçado em tentar capturar e reproduzir a personalidade física de Jacques Tati, com resultados bem-sucedidos num modo geral, ainda assim fica irremediavelmente evidente que a figura que vemos na tela não é a de Jacques Tati. O seu corpo carismático, apenas sugerido por traços finos em folhas de celuloide, as quais serão dispostas com muito engenho para se criar uma ilusão de ótica, jamais será tão animado e gracioso de movimentos quanto o corpo original. Será um corpo duro, um corpo-ausência, elíptico, abstrato, desabitado de alma. A ressurreição empreendida por Chomet não pode ser nada mais do que fantasmagórica. No final das contas, o único Jacques Tati em que continuaremos acreditando será o Jacques Tati encarnado, imortalizado pela própria fotogenia.

quinta-feira, julho 28, 2011

Fear X


O dinamarquês Nicolas Winding Refn é um cineasta da crueldade – a qual já se encontra muito bem estabelecida, em seu país, numa tradição que vai de Carl Theodor Dreyer a Lars Von Trier. Em seu terceiro longa, Fear X (Dinamarca / Reino Unido, 2003), o diretor abandona os violentos submundos de Copenhage, retratados com energia visceral em Pusher (1996) e Bleeder (1999), e mergulha na América profunda – não menos perigosa. A história tem como protagonista Harry Caine (interpretado pelo ótimo John Turturro), um pacato segurança de shopping center cuja esposa é assassinada, aparentemente sem motivo, no estacionamento do próprio local, junto de um policial à paisana.


O homem, então, passará a viver exclusivamente em função de uma incansável investigação pessoal para descobrir quem a matou (a polícia parece pouco interessada na questão). Sua obsessão é inversamente proporcional aos resultados obtidos por horas e horas assistindo em vão a gravações das câmeras de vigilância. No entanto, tudo mudará ao descobrir um negativo de fotografia na casa abandonada em frente à sua – e que lhe parece suspeita, por uma razão... sobrenatural? A pista levará Harry ao estado vizinho de Montana e ao envolvimento com coisas e pessoas que estão muito além de sua compreensão.


Agora, o que mais interessa: todos esses fatos são narrados por Refn (que também co-assina o roteiro) com grande sutileza, deixando muita coisa implícita, e utilizando-se de uma atmosfera onírica e elíptica que lembra David Lynch, principalmente Twin Peaks (1990) e A Estrada Perdida (“Lost Highway”, 1997). A fantasmagoria também se faz presente em vagarosos travellings de câmera para a frente (principalmente nas cenas do hotel), que remetem, por sua vez, ao Iluminado (“The Shinning”, 1980), de Kubrick. Por fim, a trilha sonora, co-assinada por Brian Eno, emula o minimalismo de A Carruagem Fantasma (“Körkalen”, 1921, Victor Sjöström) e traz acabamento final para o clima sombrio do filme.


Tais referências, um tanto explícitas e que alguns poderiam considerar abusivas, não nos parecem mais incômodas do que as que faz um Von Trier em Anticristo (2009, em relação a Bergman e Tarkovski), ou um Tarantino em qualquer filme (em relação à exploitation dos anos 70) – cineastas, no geral, bem considerados pela crítica. Ademais, veremos que o caráter mais abstrato deste longa tem a sua razão de ser, em relação a questões colocadas pelos acontecimentos e que discutiremos mais adiante (isso o fará distanciar-se bastante de Lynch e Kubrick, ainda que o faça aproximar-se, por outro lado, de Fincher).


De qualquer maneira, o tom e o ritmo de Fear X são bem diferentes do que sugere o hardcore das guitarras que pontuam o áudio nos dois filmes anteriores de Refn: além da crueldade, parece que o cineasta pretendeu também beber algo nas fontes do obscurantismo e do existencialismo do cinema do Atlântico Norte (os já citados Sjöstrom e Dreyer, além de Bergman, é claro). Apesar de tudo, o longa é essencialmente materialista: no final, vemos que os vivos é que devem ser temidos. O mistério não passa de conspiração – o que não faz dela algo menos tenebroso e assustador. Os personagens seguem cada um seus próprios interesses, mesquinhos ou não. Todos têm uma família que muito amam e à qual muito se dedicam e sacrificam.


Mesmo assim, não deixam de exercer atividades que tragam sofrimento para famílias alheias. É assim que é a sociedade. É assim com o assassino da Sra. Caine, e é assim com o próprio Sr. Caine: há uma cena muito significativa, no início do filme, em que o bom segurança prende em flagrante um senhor de idade que furtara uma peça de roupa em uma loja, algemando-o com frieza na frente de sua esposa, para o desespero dela. Na luta por justiça, sempre haverá baixas imprevistas, conforme diz um dos personagens “sombrios”. Enfim, não há heróis nem vilões. O que há são vítimas de tragédias, consequências terríveis de atos cujo alcance e significação estão além das mãos dos indivíduos.


Mais uma vez, eis o caso do assassino de Claire Caine e, principalmente, o de Harry Caine, que luta desesperadamente para descobrir uma verdade que jamais poderá ser a ele revelada. A conclusão filosófica do filme, para além do seu desfecho narrativo, é pós-moderna: temos que seguir em frente com nossas vidas numa relativa ignorância, pois não podemos conhecer todos os detalhes do funcionamento do “sistema”, do comportamento das pessoas ou de suas relações em sociedade; consequentemente, não podemos evitar, controlar, nem corrigir as interferências desse mesmo sistema em nossas vidas privadas. É pós-moderno, mas é clássico ao mesmo tempo. A tragédia é uma só.


Se ontem éramos cegos instrumentos para o capricho dos deuses, hoje o somos para as complexas estruturas e instituições da civilização, que para um cidadão comum como Harry Caine, não parecerão menos caprichosas. A moral de Fear X não difere muito daquela que David Fincher pregará em Zodíaco (2007): a verdade não poderá ser desvelada; é uma tolice o próprio fato de se querer saber a “verdade” no mundo da indústria e da mídia. O mistério persiste, mas com uma outra natureza: mais mundana, mais prosaica, sem deixar de ser igualmente incômoda e perigosa. Com isso, justifica-se o tom sobrenatural do filme, ainda que não haja coisa alguma de factualmente metafísico em sua diegese. Viver (ainda) é muito perigoso.