O classicismo de Clint Eastwood, afirmado e negado na mesma medida de entusiasmo por uns e outros, não diz respeito a uma suposta obediência do diretor à gramática do cinema norte-americano dito “clássico” (anos 30 aos 50). Eastwood é clássico (um dos raros clássicos contemporâneos – quem sabe o último) na medida em que compartilha de algo fundamental na essência da arte e da cultura clássicas, entendidas à moda grega: o equilíbrio. Percebe-se, em qualquer filme do diretor, uma harmonia admirável e envolvente entre forma e conteúdo, ambos orquestrados numa relação em que sentimos o ímpeto da paixão associado a uma serenidade difícil de ser alcançada por cineastas jovens.
A harmonização de opostos, a sua complementaridade dialética, os paralelismos mais diversos, tudo isso muito bem pesado na balança faz com que uma fita como A Troca seja um verdadeiro soneto. O cinema de Eastwood nos põe num estado de espírito cujas impressões mais condizem com a leitura de certas obras literárias (a tragédia talvez seja o exemplo mais contundente) do que com a contemplação de qualquer película da Hollywood antiga. A simetria – desde a concepção do plano até a edição de som, sem esquecermos o roteiro –, vista aqui não como uma espécie de redundância paralela, mas como um intrincado jogo de equivalências, de correspondências (muitas delas simbólicas) e inversões especulares, a simetria é algo a se refletir neste filme.
Assim é que a imagem do suposto filho de Christine Collins (Angelina Jolie) é o duplo de seu filho verdadeiro, imagem essa tão assustadora quanto o que o conceito de “duplo” permite carregar de tenebroso. O título original do filme – “Changeling” – traduz-se idiomaticamente por uma criança substituída por outra logo ao nascer ou, sentido mais terrível e adequado ao filme, uma criança defeituosa que se acreditava ter sido trazida por fadas em lugar de outra. A imagem do filho de Collins corresponde, por sua vez, à do garoto cúmplice do assassino serial: entre ambas as imagens – a da vítima e a do carrasco, há logicamente enormes oposições; mas também identificações: ambas são crianças.
As lágrimas de medo e arrependimento do jovem carrasco dão a dimensão da sua infância e humanidade. A cena é uma das maiores mostras da sensibilidade e inteligência únicas de Clint Eastwood. A imagem do medo das crianças, neste filme, relaciona-se em tensão com a imagem do universo adulto (tanto a da polícia corrupta quanto a do assassino serial); mesmo assim, há identificações: os momentos de medo, preocupação ou insegurança expressos pelos policiais e pelo assassino (especialmente por este último, na cena de sua execução capital) revelam que todos somos crianças neste mundo, em alguma medida. Como mãe, Christine Collins será o amálgama perfeito entre os dois universos.
A imagem contundente, enfática, da Sra. Collins representará a união da infância e da maturidade, da inocência e do pecado, da ilusão e da desilusão, do masculino e do feminino. Como mãe solteira, mulher sensível que se tornará alvo de diversos e terríveis preconceitos institucionalizados, mas que se manterá firme na luta e nos enfrentamentos de maneira que muitos homens não seriam capazes, ela é a figura mítica do andrógino (de novo o referencial clássico). Autossuficiente, há somente um único e rápido momento do filme em que é colocada a questão “amorosa” em sua vida; mas esse momento é logo descartado em função de um acontecimento que será a consolidação final de sua autossuficiência – e o final do próprio filme.
Em relação à dualidade ambivalente da protagonista, a cena mais expressiva em relação a ela é o “tour de force” entre Christine Collins e Gordon Northcott, o “serial killer”, após a qual ela fica trancada numa cela enquanto ele é levado para longe, como que a ser protegido. É dessas sutilezas que a genialidade de Eastwood se compõe. E sutileza também é um atributo de uma arte dita clássica ou classicista. Quanto às implicações mais filosóficas do filme, ele mostra que este mundo é dominado pela dúvida, pela incerteza. E jamais teremos o conhecimento de todo o escopo de resultados desencadeados por nossas ações, por nossas escolhas (a Sra. Collins escolhera deixar o filho em casa sozinho, na ocasião em que ele será raptado).
Alguns poderão reputar tais questões como modernas, mas elas já fazem parte da mitologia grega mais antiga, são o “erro” fundamental, o princípio da tragédia. Outro tema importante de A Troca, o embate kafkaniano entre o indivíduo e instituições cruelmente abstracionistas apenas dá um molde contemporâneo para a velha condição do homem submetido em absoluto à vontade caprichosa dos deuses. Isso tudo revela um outro aspecto clássico de Eastwood: o universalismo. Apesar de todos os efeitos estéticos de reconstituição de época (incluindo aí o logotipo-vinheta da Universal Pictures da própria época, na apresentação do filme), o diretor conduz sua narrativa apenas pelos caminhos mais arquetípicos que lhe interessam. Daí a não-menção alguma à crise de 29 ou a qualquer de seus efeitos.
Mas “reconstituição” nos lembra de mimese – o maior dos atributos da arte clássica e núcleo do DNA de A Troca. O maior efeito, na emoção e na inteligência do espectador, ao atravessar sofridamente (no bom sentido) as quase duas horas e meia de exibição deste filme é lembrar-se de que se trata de uma história real. Queríamos acreditar que não fosse – tanto é o horror. É um daqueles filmes que dá literalmente um aperto no coração, não por um susto qualquer, mas pelo peso de realidade que reputamos à encenação. E o que é cinema, senão essa fascinação e esse assombro? Não foi isso o que predominou na arte por quase 2.500 anos?
Última característica classicizante de A Troca: a perspectiva. Ao mesmo tempo em que a história da Sra. Collins provoca a sua dose de catarse (mais um princípio da estética clássica, aliás), Eastwood não se esquece de colocá-la em perspectiva no discurso com que se dirige ao espectador. No que poderia degringolar para o melodrama fácil, o diretor mantém a serenidade e certo distanciamento – não tanto documental quanto filosófico. Por outro lado, a fita não cai nas armadilhas fáceis do filme-denúncia ou do filme-tese. Apaixonado no que mostra, racional na maneira de mostrar, A Troca é um filme modelo, um filme perfeito (na acepção grega). Eis o seu referencial de análise – e lá está o seu valor.
A harmonização de opostos, a sua complementaridade dialética, os paralelismos mais diversos, tudo isso muito bem pesado na balança faz com que uma fita como A Troca seja um verdadeiro soneto. O cinema de Eastwood nos põe num estado de espírito cujas impressões mais condizem com a leitura de certas obras literárias (a tragédia talvez seja o exemplo mais contundente) do que com a contemplação de qualquer película da Hollywood antiga. A simetria – desde a concepção do plano até a edição de som, sem esquecermos o roteiro –, vista aqui não como uma espécie de redundância paralela, mas como um intrincado jogo de equivalências, de correspondências (muitas delas simbólicas) e inversões especulares, a simetria é algo a se refletir neste filme.
Assim é que a imagem do suposto filho de Christine Collins (Angelina Jolie) é o duplo de seu filho verdadeiro, imagem essa tão assustadora quanto o que o conceito de “duplo” permite carregar de tenebroso. O título original do filme – “Changeling” – traduz-se idiomaticamente por uma criança substituída por outra logo ao nascer ou, sentido mais terrível e adequado ao filme, uma criança defeituosa que se acreditava ter sido trazida por fadas em lugar de outra. A imagem do filho de Collins corresponde, por sua vez, à do garoto cúmplice do assassino serial: entre ambas as imagens – a da vítima e a do carrasco, há logicamente enormes oposições; mas também identificações: ambas são crianças.
As lágrimas de medo e arrependimento do jovem carrasco dão a dimensão da sua infância e humanidade. A cena é uma das maiores mostras da sensibilidade e inteligência únicas de Clint Eastwood. A imagem do medo das crianças, neste filme, relaciona-se em tensão com a imagem do universo adulto (tanto a da polícia corrupta quanto a do assassino serial); mesmo assim, há identificações: os momentos de medo, preocupação ou insegurança expressos pelos policiais e pelo assassino (especialmente por este último, na cena de sua execução capital) revelam que todos somos crianças neste mundo, em alguma medida. Como mãe, Christine Collins será o amálgama perfeito entre os dois universos.
A imagem contundente, enfática, da Sra. Collins representará a união da infância e da maturidade, da inocência e do pecado, da ilusão e da desilusão, do masculino e do feminino. Como mãe solteira, mulher sensível que se tornará alvo de diversos e terríveis preconceitos institucionalizados, mas que se manterá firme na luta e nos enfrentamentos de maneira que muitos homens não seriam capazes, ela é a figura mítica do andrógino (de novo o referencial clássico). Autossuficiente, há somente um único e rápido momento do filme em que é colocada a questão “amorosa” em sua vida; mas esse momento é logo descartado em função de um acontecimento que será a consolidação final de sua autossuficiência – e o final do próprio filme.
Em relação à dualidade ambivalente da protagonista, a cena mais expressiva em relação a ela é o “tour de force” entre Christine Collins e Gordon Northcott, o “serial killer”, após a qual ela fica trancada numa cela enquanto ele é levado para longe, como que a ser protegido. É dessas sutilezas que a genialidade de Eastwood se compõe. E sutileza também é um atributo de uma arte dita clássica ou classicista. Quanto às implicações mais filosóficas do filme, ele mostra que este mundo é dominado pela dúvida, pela incerteza. E jamais teremos o conhecimento de todo o escopo de resultados desencadeados por nossas ações, por nossas escolhas (a Sra. Collins escolhera deixar o filho em casa sozinho, na ocasião em que ele será raptado).
Alguns poderão reputar tais questões como modernas, mas elas já fazem parte da mitologia grega mais antiga, são o “erro” fundamental, o princípio da tragédia. Outro tema importante de A Troca, o embate kafkaniano entre o indivíduo e instituições cruelmente abstracionistas apenas dá um molde contemporâneo para a velha condição do homem submetido em absoluto à vontade caprichosa dos deuses. Isso tudo revela um outro aspecto clássico de Eastwood: o universalismo. Apesar de todos os efeitos estéticos de reconstituição de época (incluindo aí o logotipo-vinheta da Universal Pictures da própria época, na apresentação do filme), o diretor conduz sua narrativa apenas pelos caminhos mais arquetípicos que lhe interessam. Daí a não-menção alguma à crise de 29 ou a qualquer de seus efeitos.
Mas “reconstituição” nos lembra de mimese – o maior dos atributos da arte clássica e núcleo do DNA de A Troca. O maior efeito, na emoção e na inteligência do espectador, ao atravessar sofridamente (no bom sentido) as quase duas horas e meia de exibição deste filme é lembrar-se de que se trata de uma história real. Queríamos acreditar que não fosse – tanto é o horror. É um daqueles filmes que dá literalmente um aperto no coração, não por um susto qualquer, mas pelo peso de realidade que reputamos à encenação. E o que é cinema, senão essa fascinação e esse assombro? Não foi isso o que predominou na arte por quase 2.500 anos?
Última característica classicizante de A Troca: a perspectiva. Ao mesmo tempo em que a história da Sra. Collins provoca a sua dose de catarse (mais um princípio da estética clássica, aliás), Eastwood não se esquece de colocá-la em perspectiva no discurso com que se dirige ao espectador. No que poderia degringolar para o melodrama fácil, o diretor mantém a serenidade e certo distanciamento – não tanto documental quanto filosófico. Por outro lado, a fita não cai nas armadilhas fáceis do filme-denúncia ou do filme-tese. Apaixonado no que mostra, racional na maneira de mostrar, A Troca é um filme modelo, um filme perfeito (na acepção grega). Eis o seu referencial de análise – e lá está o seu valor.
Achei um filmaço. A crítica tentou me convencer que o filme tinha defeitos quando na verdade tudo funciona de acordo, mas eu não me deixei levar.
ResponderExcluirMuito bom mesmo! Agora, eu estou a fim de ver "Gran Torino", do qual todos falam muito bem...
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