segunda-feira, setembro 29, 2008

O Bandido da Luz Vermelha


Desta vez vou fazer diferente. Não vou falar sobre o filme. Passarei a voz ao próprio cineasta. E ponto.

Manifesto

1 – Meu filme é um far-west sobre o III Mundo. Isto é, fusão e mixagem de vários gêneros. Fiz um filme-soma; um far-west, mas também musical, documentário, policial, comédia (ou chanchada?) e ficção científica. Do documentário, a sinceridade (Rossellini); do policial, a violência (Fuller); da comédia, o ritmo anárquico (Sennett, Keaton); do western, a simplificação brutal dos conflitos (Mann).

2 – O Bandido da Luz Vermelha persegue, ele, a polícia enquanto os tiras fazem reflexões metafísicas, meditando sobre a solidão e a incomunicabilidade. Quando um personagem não pode fazer nada, ele avacalha.

3 – Orson Welles me ensinou a não separar a política do crime.

4 – Jean-Luc Godard me ensinou a filmar tudo pela metade do preço.

5 – Em Glauber Rocha conheci o cinema de guerrilha feito à base de planos gerais.

6 – Fuller foi quem me mostrou como desmontar o cinema tradicional através da montagem.

7 – Cineasta do excesso e do crime, José Mojica Marins me apontou a poesia furiosa dos atores do Brás, das cortinas e ruínas cafajestes e dos seus diálogos aparentemente banais. Mojica e o cinema japonês me ensinaram a saber ser livre e – ao mesmo tempo – acadêmico.

8 – O solitário Murnau me ensinou a amar o plano fixo acima de todos os travellings.

9 – É preciso descobrir o segredo do cinema de Luís poeta e agitador Buñuel, anjo exterminador.

10 – Nunca se esquecendo de Hitchcock, Eisenstein e Nicholas Ray.

11 – Porque o que eu queira mesmo era fazer um filme mágico e cafajeste cujos personagens fossem sublimes e boçais, onde a estupidez – acima de tudo – revelasse as leis secretas da alma e do corpo subdesenvolvido. Quis fazer um painel sobre a sociedade delirante, ameaçada por um criminoso solitário. Quis dar esse salto porque entendi que tinha que filmar o possível e o impossível num país subdesenvolvido. Meus personagens são, todos eles, inutilmente boçais – aliás como 80% do cinema brasileiro; desde a estupidez trágica do Corisco à bobagem de Boca de Ouro, passando por Zé do Caixão e pelos párias de Barravento.

12 – Estou filmando a vida do Bandido da Luz Vermelha como poderia estar contando os milagres de São João Batista, a juventude de Marx ou as aventuras de Chateaubriand. É um bom pretexto para refletir sobre o Brasil da década de 60. Nesse painel, a política e o crime identificam personagens do alto e do baixo mundo.

13 – Tive de fazer cinema fora da lei aqui em São Paulo porque quis dar um esforço total em direção ao filme brasileiro liberador, revolucionário também nas panorâmicas, na câmara fixa e nos cortes secos. O ponto de partida de nossos filmes deve ser a instabilidade do cinema – como também da nossa sociedade, da nossa estética, dos nossos amores e do nosso sono. Por isso, a câmara é indecisa; o som fugidio; os personagens medrosos. Nesse País tudo é possível e por isso o filme pode explodir a qualquer momento.

Rogério Sganzerla

quarta-feira, setembro 24, 2008

Hellboy II: O Exército Dourado


Quais os contos de fadas possíveis neste mundo em que a barbárie se faz tão presente? Quais os contos de fadas possíveis num mundo traspassado por nazismo, industrialização, consumismo, aquecimento global, FBI, indústria cultural, mídia de massas, Internet, etc? Quais os contos de fadas possíveis num mundo dividido entre positivismo, niilismo, materialismo histórico, psicanálise, existencialismo, ecologia, estruturalismo, semiótica, pós-modernismo, fragmentação do sujeito, etc? Será que existe algum conto de fadas possível nesta era dos extremos? Guillermo Del Toro parece acreditar que sim. E não se trata de um conto de fadas desencantado, niilista, metalingüístico – um conto de fadas “que desconstrói” os contos de fadas tradicionais, o que pode até ser moda hoje em dia.

Guillermo Del Toro não faz isso. Se fizesse, estaria tomando o lado da “modernidade”, abraçando a onda da malícia (o ápice do espírito “pós-moderno”) que parece arrastar tudo junto de si para Deus sabe lá onde. Guillermo Del Toro segue a linha da fábula tradicional, com veias totalizantes. Os absolutos não podem ser perdidos de vista (pelo menos, não algum deles). Mas o diretor e roteirista aprendeu o que teve de aprender da lição moderna: as suas fábulas são conscientes – o que não quer dizer necessariamente que elas sejam desencantadas. Eis o discernimento que muitas inteligências “mudernas” e “pós-mudernas” parecem não ser capazes de fazer, de maneira alguma. Del Toro é uma das pouquíssimas visões de mundo que poderíamos chamar de sublime, em nosso tempo.

Os filmes de Del Toro procuram fazer um reencantamento do mundo. Mas este processo é o de dar um novo encanto às coisas, pois após Marx, Nietzche, Freud, Ford e Hitler já não é possível – de fato – retomarmos a linha cortada dos antigos encantos. Cineastas como Del Toro devolvem ao cinema (mas de uma outra e nova maneira) algo com que o cinema nasceu, e que foi, durante algum tempo, sua grande promessa; mas este é um algo que logo se perdeu, foi desviado, deformado, violentado e eventualmente assassinado. Este novo encanto vestirá algumas peças do velho encanto, mas misturará com novas, e novas que estão sempre sendo inventadas, a todo momento. Eis a maneira particularmente moderna com que artistas do naipe de Del Toro analisam todos os fragmentos e relatividades que formam o “zeitgeist” contemporâneo, e junta-os numa síntese universalizante, totalizante.

Estamos aqui no campo de uma dialética bastante positiva – mas jamais positivista. Um filme como Hellboy II: O Exército Dourado (“Hellboy II: The Golden Army”, EUA / Alemanha, 2008) traz, no bojo de seus referentes e mensagens – assim como no bojo de sua própria construção enquanto código – uma síntese entre o racional, o lógico, o civilizado, o cultural, o adulto, o industrial; e o primitivo, o arquétipo, o poético, o ritual, o mágico, o infantil, a natureza. O universo de Del Toro: seres teriomórficos habitando passagens secretas do metrô das metrópoles; criaturas míticas disfarçadas de velhinhas mendicantes, mundos subterrâneos habitados por seres ressentidos, e ressentidos por quê? Pois nós (a civilização ocidental) os exilamos lá. São refugiados. O mercado dos trolls parece uma favela, é um cenário típico de Terceiro Mundo ou de zona de guerra.

Tais criaturas, que um dia habitaram a superfície do nosso planeta, criaturas nobres como o rei élfico Balor, estão hoje relegados aos esgotos, às ruínas de fábricas, linhas de metrô desativadas, etc. Não é à toa que o seu filho, o príncipe Nuada, particularmente ressentido, revoltar-se-á contra o mundo humano. Mas será ele realmente o vilão dessa história? Cinematograficamente, a fábula se revela com grande e belíssimo impacto visual: a fotografia e a direção de arte nos filmes de Del Toro são a sua grande assinatura estilística. E o mais fantástico é reconhecer que o surrealismo tão impressionante das imagens de Hellboy II é o que mais contribui para desvelar o caráter alegórico dessas mesmas imagens. Os seres e lugares mágicos que preenchem o filme devem ser lidos na chave da polêmica entre o racional e o poético, chave que abre as portas para o mundo de Del Toro, tal como também se revela em O Labirinto do Fauno (2006).

A nossa civilização e a nossa cultura destruíram a natureza, vegetal ou animal (a cena da luta entre Hellboy e o elemental é das mais significativas e belas como cinema), e também a nossa própria natureza humana. Os mitos e arquétipos que fundaram o nosso ser (e também a nossa própria cultura, através das religiões, lendas, literatura, etc) foram expulsos, pela nova civilização “iluminista”, para as cavernas subterrâneas e obscuras do inconsciente. Nós os reprimimos, trancamos lá. Mas o inconsciente, ao contrário do que mostra A História Sem Fim (1984, Wolfgang Petersen) não fica situado num lugar distante e inatingível, enquanto provocamos, sem querer querendo, a sua lenta erosão. O inconsciente está à beira da nossa tão querida casa da consciência. Basta abrirmos as portas ou janelas, e ele entrará.

Em Del Toro, as coisas que abandonamos estão logo abaixo de nós, nas ruínas, esgotos e cavernas de nosso próprio mundo. É como se as tivéssemos varrido para debaixo do tapete de nossa casa. E, o que é mais interessante: às vezes, alguma coisa do “mundo subterrâneo” escapa, cai sem querer em nosso mundo (ou o invade mesmo), seja essa coisa um menino demônio que será criado pelo exército dos EUA, um elfo, um troll ou uma “fada dos dentes”. A frase de Nuada, a este propósito, é altamente significativa, de potencial verdadeiramente revolucionário: “Algo para lembrar-lhes o porquê de vocês terem um dia temido a escuridão”. Hoje, no conforto elétrico de nossos cômodos bem iluminados, não tememos mais o escuro, mas junto desse medo também perdemos (ou destruímos) muitas outras coisas da maior importância psíquica e social.

Com isso, é claro que a grande revolução de que o nosso mundo realmente precisa jamais se fará através de algo chamado “materialismo histórico”... Não adianta negarmos as coisas subterrâneas, elas não desaparecerão de nossa vista, ainda que sejam necessários olhos “especiais” para enxergá-las, tal o nível da alienação – a verdadeira alienação. Eis porque o conto de fadas de Guillermo Del Toro é consciente. Hellboy II é um filme político, mas de uma política que gostaríamos de ver mais e mais. As criaturas mágicas de Del Toro representam tudo aquilo que excluímos, que segregamos de nossa sociedade e de nossas mentes conscientes. Eis o perpétuo holocausto. Um dos “vilões” em Hellboy (o primeiro, de 2004) usa bem a propósito a palavra holocausto.

A revolução promovida pelas criaturas mágicas de Del Toro lembra bastante, neste aspecto, a revolução promovida pelos “zumbis” de George Romero. São fortes alegorias, muito contemporâneas. E não podem ser reduzidas à chave tão simplista: burguesia-proletariado. O buraco é muito mais embaixo. O fato de Hellboy e os seus companheiros “anormais” se demitirem do serviço secreto norte-americano no final deste filme é a chave de ouro do soneto. Isto é, não querem mais fazer o trabalho sujo de eliminar os “monstros” que “invadem” o nosso mundo. Deixe-os chegarem e se instalarem, à vontade. O mundo também é deles.

terça-feira, setembro 23, 2008

Escola do Rock


“We wanted to kick it out old school, the way they did in olden times, when kids’ movies were actually good!”

(Nós queríamos fazer a coisa do jeito tradicional, como nos velhos tempos, quando os filmes infantis eram realmente bons!)

A afirmação acima foi feita por Jack Black, nos extras do DVD de Escola do Rock (“School of Rock”, EUA, 2003, dir.: Richard Linklater). Resume perfeitamente as qualidades do filme. Escola do Rock possui aquela paixão, a imaginação, a liberdade, aquela disposição de espírito de que tudo é possível, que encontramos de maneira tão única na criança: uma inteligência e uma sensibilidade absolutamente livres, que rompem quaisquer paradigmas, fórmulas, conformações, consensos, etc. É um filme que sabe realmente estimular a alma de artista presente em qualquer criança.

Mas, como bem disse Jack Black, já não se fazem mais filmes assim, como antigamente – pelo menos não tanto, eis a minha impressão. Só para ficar na “minha” geração, como fazem falta filmes tais quais Viagem ao Mundo dos Sonhos (“Explorers”, EUA, 1985, dir.: Joe Dante), The Goonies (EUA, 1985, dir.: Richard Donner) ou A História sem Fim (“The Never Ending Story”, EUA, 1984, dir.: Wolfgang Petersen). É claro que hoje temos Peter Jacksons e Guillermo Del Toros, assim como esta pérola com ar saudosista que é Escola do Rock: quando vi pela primeira vez, não consegui me livrar da impressão de que já se tinha em mãos um grande clássico da sessão da tarde lá por volta de 2020. Mas, a cada vez que “zapeio” pelas sessões da tarde de hoje em dia, não consigo segurar a decepção...

sábado, setembro 20, 2008

Filmes de Agosto


Sinfonia de Paris (“An American in Paris”, EUA, 1951, Stanley Donen)
Who could ask for anything more?

Antes de Partir (“The Bucket List”, EUA, 2007, Rob Reiner)
Um daqueles filmes que ensinam a viver – para quem não sabe.

The Science of Sleep ("La Science des Rêves", França / Itália, 2006, Michel Gondry)
Um daqueles filmes que ensinam a sonhar – para quem não sabe.

A Noiva Cadáver (“Corpse Bride”, EUA, 2005, Tim Burton)
Um daqueles filmes que ensinam a amar – para quem não sabe.

A Hora e Vez de Augusto Matraga (Brasil, 1965, Roberto Santos)
É a adaptação cinematográfica da Literatura de Guimarães Rosa que mais chega perto da metafísica estética do escritor – embora ainda esteja longe.

A Encarnação do Demônio (Brasil, 2007, José Mojica Marins)
Isso é que é cinema de autor. O resto é pretensão.

Diary of the Dead (EUA, 2007, George A. Romero)
A morte da morte.

Star Wars: The Clone Wars (EUA, 2008, Dave Filoni)
Meia-boca. Mas digno.

Lemon Tree ("Etz Limon", Israel / Alemanha / França, 2008, Eran Riklis)
O que realmente interessa na política.

quinta-feira, setembro 18, 2008

O Martírio de Joana D'Arc


Uma das maiores razões de o Cinema ser uma Arte. O Martírio de Joana D’Arc (“La Passion de Jeanne D’Arc”, França, 1928) é mais uma obra-prima de Carl Theodor Dreyer, um dos poucos mestres absolutos da Sétima Arte. Em julho de 2007, eu escrevi neste Blog sobre Vampyr (1932), outra pérola do diretor dinamarquês. Muito do que disse lá vale para ambos os filmes: particularmente os aspectos da fotogenia e do cinema de poesia. Contudo, a poesia em “O Martírio...” é de uma espécie um tanto quanto diferente em alguns aspectos. A um só tempo lírica e dramática, a poesia do destino de Joana D’Arc se dá aos nossos olhos maravilhados em uma forma de balé. Um balé de rostos e rugas.

O muito enfático jogo de olhares, expressões faciais, posturas e viradas de cabeça compõe um grandioso tour de force das diferentes faces humanas: as rígidas, iracundas, ameaçadoras ou sarcásticas “faces da perseguição” (a alegoria é quase literal), do julgamento e da condenação, nas figuras dos juízes da inquisição; e a face sofrida, amolecida, resignada (mas lutadora nos momentos decisivos), mansa, mas muito auto-confiante, embora plena de terrível medo, a “face do justo”, na figura santa de Joana D’Arc. Este filme não é composto por meras imagens. São verdadeiros ícones. Religiosos ou profanos. Tanto os já tão falados rostos humanos, quanto quaisquer objetos, principalmente os instrumentos da tortura e da imolação de Joana D’Arc.

Apesar de o cinematógrafo ser uma máquina dotada do poder de captar e reproduzir as coisas, há pouquíssimos filmes que efetivamente mostram as coisas, as coisas em si, dando-lhes (ou revelando nelas) um estatuto que vai muito além daquele de uma pretensa “realidade”. É aí que reside a poesia. É curioso dizer isso, mas a maioria dos filmes são cegos. Contudo, a “lição de coisas” de Dreyer foi aprendida, ainda que por poucos: Andrei Tarkoviski, Ingmar Bergman, David Lynch. A fotografia em “O Martírio” é pictórica: creio que nunca vi um filme em que a composição dos planos fosse tão elaborada e parecida com a dos quadros, verdadeiros quadros vivos, pinturas animadas.

Aliás, a relação entre o cinema de Dreyer e a pintura dos grandes mestres já foi muito bem assinalada por André Bazin. Os planos em “O Martírio” são compostos com base num jogo de linhas perpendiculares, mas com ângulos oblíquos, formados entre linhas de objetos (uma lança, a beirada de um púlpito) ou do cenário (a divisória entre paredes, o desenho de uma porta, uma janela), ou ainda entre linhas de objetos diegéticos e as linhas da tela em que se exibe o filme. O mesmo procedimento pode ser visto em Eisenstein, nos expressionistas alemães, em Fritz Lang, Alfred Hitchcock, Stanley Kubrick... Todo cineasta deveria estudar não apenas fotografia, mas pintura, principalmente a pintura clássica.

Ainda em relação Eisenstein, a cena da ameaça que os inquisidores fazem a Joana utilizando instrumentos de tortura é uma das mais impressionantes montagens que já vi no cinema. Mais impressionante ainda se pensarmos nos filmes que se fizeram até 1928 e que se faziam naquela época. Hoje, essa montagem “de vídeo-clipe” já foi mais do que banalizada pela publicidade (comercial ou não). Aliás, isso nos leva a uma discussão muito séria. Os primeiros teóricos do Cinema colocavam uma fé incrível no poder (mágico? estético? pedagógico?) da imagem captada pelo cinematógrafo. Não há nada mais gostoso para o verdadeiro amante da Sétima Arte do que acompanhar as efusivas descobertas deles, as discussões, polêmicas, etc.

Infelizmente, para nós, hoje em dia, tudo isso parecerá meio ingênuo, se não perigoso. Traumatizados que estamos com o uso – e abuso – que fizeram da grande promessa do cinematógrafo os regimes totalitários (particularmente o nazi-fascismo) e a propaganda capitalista, a indústria cultural (o pior dela), já não enxergamos com os mesmos olhos, fascinados e puros, coisas simples e maravilhosas como a “montagem de atrações”, o primeiro plano, etc. Este último merece uma consideração especial. Nunca o poder expressivo do rosto humano fora tão explorado (nem voltaria a ser, creio eu) quanto nos primeiros planos de “O Martírio...”. E hoje em dia, o que é que se tem em relação a isso? Novelas da Globo? “Olga”? Pelo amor de Deus...

Se o alcance profissional e estético de um diretor se mede por sua decisão (e o acerto dela) em relação ao lugar em que se vai colocar a câmera para filmar, então teremos que dizer que Carl Dreyer é um autêntico gênio. Não só pelos primeiros planos, mas também por colocar a câmera muitas vezes em lugares (e ângulos) inusitados – ainda mais para a época, em que a câmera não era tão livre quanto hoje – captando sempre novos pontos de vista. Outro dia eu disse que há filmes que nos dão vontade de fazer filmes (a respeito de Ainda Orangotangos). Em relação a Dreyer, a afirmação fica um pouco diferente: há filmes que nos dão vontade de fazer Cinema.

domingo, setembro 14, 2008

Trovão Tropical


Vida longa às idéias malucas em cinema! Ben Stiller, como diretor e roteirista, parece estar se especializando em “mocking movies” (filmes de tiração de sarro). Trovão Tropical (“Tropic Thunder”, EUA, 2008), que satiriza o universo de Hollywood e o star system, é a evolução de Zoolander (2001), que ridicularizava o “metier” dos super models. O roteiro, escrito também por Justin Theroux – que interpretou o cineasta cheio de problemas em Cidade dos Sonhos (2002, David Lynch) –, trata de um grupo de super-astros de Hollywood envolvidos nas filmagens do “mais caro” filme de guerra já feito. Todas as diferentes idiossincrasias típicas das celebridades estão detalhadamente representadas. O melhor de tudo é ver Robert Downey Jr. representando um homem negro, com a devida (e incrível) maquiagem e todos os estereótipos (junto de Homem de Ferro, este ano é a hora e vez de Downey Jr.).

Mas o filme está longe de girar ao seu redor. O elenco de estrelas é surpreendente, algumas fazendo apenas pequenas pontas (como já tinha acontecido em Zoolander), em alguns casos difíceis de reconhecer: o próprio Stiller, Jack Black, Mathew McConaughey, Nick Nolte, Tom Cruise, Tobey Maguire... O filme desconstrói todos os códigos dramáticos de filmes de guerra e das grandes produções da indústria como um todo: reconhecem-se facilmente cenas que se fazem de paródia de Platoon (1986, Oliver Stone) e Apocalipse Now (1979, Francis Ford Coppola). O primeiro terço da projeção é particularmente hilário nesse sentido. Mas e quanto ao resto? Bem, Trovão Tropical não é uma sátira desmoralizadora; está mais para uma daquelas homenagens auto-irônicas e metalingüísticas que a indústria faz de si mesma. Os espectadores de espírito mais crítico e iconoclasta poderão não gostar, mas não há nada de errado em tais brincadeiras mais ou menos ingênuas.

O mais interessante é que este filme brinca com as sucessivas camadas narrativas que escalonam a distância entre a realidade e a ficção em gradações bem sutis, não deixando de haver perturbadoras misturas. São atores (os reais) que interpretam atores (os personagens “primários”) que interpretam personagens (personagens “secundários”) que, por sua vez, baseiam-se em pessoas “reais” (em relação à primeira camada da fabulação, no universo dos personagens primários). Toda essa confusão aparece numa fala dita por Downey Jr., numa cena dramática – mas com intenções irônicas e metalingüísticas, sub-repticiamente –: “Eu sou um cara representando um cara que se disfarça de outro cara”. O primeiro desses três “caras” citados é o próprio Downey (maneira sutil de quebrar a quarta parede).

O mais curioso é os personagens-atores descobrirem que o filme que estavam rodando se transformara em realidade e que, a partir desse momento, eles terão de virar soldados de verdade se quiserem salvar a própria pele. A ficção sobre uma realidade que vira ficção que vira realidade que é, no fundo, ficção. A fita que eles estavam rodando, “Tropic Thunder”, era baseada em fatos “reais”. A mesma proposta já havia sido realizada, no contexto da ficção científica e, mais particularmente, no da série clássica Star Trek, no ótimo longa Heróis Fora de Órbita (“Galaxy Quest”, EUA, 1999, dir.: Dean Parisot). Além das várias camadas narrativas, tem-se a comédia que vira drama que é, no fundo, comédia. O filme de Stiller brinca também com as fórmulas e os tiques do cinema dramático, cinema de arte, cinema independente ou cult.

Os “mocking trailers” de outros filmes dos personagens-atores, que aparecem logo no começo, logo após que são exibidos os trailers reais da sala de exibição e antes de aparecerem os créditos do filme em questão, chegam quase a confundir o espectador, mas são também divertidíssimos, especialmente o do “filme de arte” estrelado por Robert Downey Jr. (creditado como Kirk Lazarus) e Tobey Maguire (como ele mesmo). Também foi feito um mockumentary (documentário falso, satírico), chamado Rain of Madness, sobre a produção de “Tropic Thunder” (não o filme que vemos no cinema, mas o filme que os personagens-atores tentam realizar). Esperemos que saia junto dos extras do DVD. Tudo isso mostra que ainda há muito a ser feito na linha iniciada por This Is Spinal Tap (EUA, 1984, Rob Reiner), o qual discuti aqui em junho.

Trovão Tropical também é um daqueles filmes que nos dão vontade de fazer filmes (filmes que despertam vocações). Sentimos nele a alegria, o entusiasmo de filmar, de fazer cinema. Mesmo tratando de uma grande e milionária produção, percebe-se que o filme é profundamente vivenciado – ainda que de maneiras bem diferentes – pelos atores e por outros artistas / profissionais empenhados. Vivenciado de uma maneira séria, mas ao mesmo tempo brincalhona, é uma paixão quase juvenil que vislumbramos em alguns momentos. Meninos que brincam e brigam ao redor de um grande e caro brinquedo – e brigam também por ele. O que nos lembra a famosa frase do jovem Orson Welles, ao chegar em Hollywood: “Este é o maior trenzinho elétrico que um garoto já teve!”.

quinta-feira, setembro 11, 2008

Canções de Amor


Tudo o que eu disse, em janeiro deste ano, a respeito de Em Paris (2006) – fita anterior de Christophe Honoré – aplica-se de maneira exemplar também a este Canções de Amor (2007). A felicidade de filmar, o toque impressionista das imagens (ressaltado aqui pela captação em digital), fazendo com que o filme seja simplesmente gostoso de ver; e principalmente, o fato de serem películas prenhes de musicalidade, embora na primeira a música estivesse implícita; já nesta última, a melodia, o ritmo e a harmonia se revelam com um explícito até libidinoso. “Chansons d’Amour” não é um musical no sentido tradicional, em que a imagem se faz em favor da música, mas é um filme como Os Guarda-Chuvas do Amor (França, 1964, dir.: Jacques Demy), no qual é a música que serve à imagem e à poesia propriamente literária do enredo.

Este filme é como uma canção pop: gruda na nossa cabeça. Se Em Paris parecia um vídeo-clipe, esta última produção é exatamente um “vídeo-clipe”. É particularmente recomendável aos corações apaixonados (não interessa por quem, mesmo que seja por ninguém). A fortíssima presença de Paris como cenário vivo, realmente animado de luz, sombras, concreto, metal e pessoas, a cidade como personagem-testemunha e confidente das “canções” de amor é uma grande gostosura também presente neste filme. É um daqueles momentos em que o cinema desperta o nosso olhar para a paisagem que nos cerca. Sair da sala de exibição, à noite, após ter visto esse filme, tem um efeito poeticamente revigorante, o mesmo que senti após Um Beijo Roubado (de Wong Kar-Wai). A “educação sentimental” por que passam os personagens também tem um delicioso efeito catártico.

Com tudo isso, a realização de Honoré é vigorosa, mas... não é inventiva (e nem precisa ser, estou fazendo apenas uma constatação – embora falte uma real criatividade no cinema contemporâneo, daquelas que criam escola). “Chansons d’Amour” é um filme gostoso como os melhores clássicos do cinema francês (de Renoir a Godard); sentimos nele a paixão e a disciplina de um jovem cineasta a estudar, homenagear e tentar encaixar os seus pequeninos pés nas pegadas grandes dos mestres, trilhando aos saltos o caminho que os seus antecessores fizeram em passos curtos. É bom e ruim ao mesmo tempo as novas promessas do cinema possuírem um caráter tão “vintage”. Quem gosta da Nouvelle Vague vai adorar os filmes de Christophe Honoré. Mas quem espera algo realmente novo, um novo gênio criador, bem... continuará esperando.

terça-feira, setembro 09, 2008

Pra criar polêmica...

Por que é que não aparece algum filme SENSÍVEL feito por HOMENS neste país? Parabéns a Lina Chamie (A Via-Láctea) e a Sandra Kogut (Mutum) por uma humanidade que parece ser exclusiva das mulheres mesmo. Quanto às produções dos “jovens” cineastas, parecem todas saírem das mentes doentias de BULLIES. Ou de NERDS, o que dá na mesma, afinal...

segunda-feira, setembro 08, 2008

Ainda Orangotangos


É preciso uma boa justificativa para se rodar um filme inteiro de longa metragem num único plano-seqüência. Aliás, para qualquer escolha estilística é necessária uma boa razão. Ao entrar para assistir a Ainda Orangotangos (Brasil, 2007), estava preparado para enfrentar mais um virtuosismo frívolo de filme “experimental”, se fosse este o caso. Respiremos aliviados: não é. O filme tem propósito, ainda que seu propósito seja a absoluta falta de propósito. Mas é aí que justamente podem começar os problemas. Parafraseando algum poeta modernista – ou algum professor – é preciso mais disciplina para se criarem versos livres do que para se compor sonetos decassílabos sáficos. A questão é: o equilíbrio paradoxal (ótimo conceito) entre o ultra-real e o surreal não ficou muito bem acertado em Ainda Orangotangos.

É claro que estamos falando de algo extremamente raro de se buscar e mais raro ainda de se alcançar; logo, é mais saudável aqui congratularmos a produção pelo que ela conseguiu de fato fazer – ainda mais se pensarmos no estado atual do cinema brasileiro, incluindo “experiências” absolutamente frustradas como Durval Discos (2002). Pelo que ouvi, Olho de Boi (2008) também é carregado daquelas boas intenções – e apenas isso – das quais o inferno já está cheio; enfim, ainda preciso conferir por mim mesmo. Quanto ao filme de estréia de Gustavo Spolidoro, tenhamos mais condescendência. A experiência é bastante válida, ainda mais se considerarmos que se trata de uma produção digital com ares caseiros: não é preciso dispor de milhões para se fazer bom (e grande) cinema, a criatividade ainda é o que mais conta.

Ainda Orangotangos é um daqueles filmes que nos dão vontade de fazer filmes. Este é o melhor elogio que se lhe pode fazer. Mas, como eu estava dizendo, a fita parece querer mostrar o ultra-real tão “ultra” que chega às raias do surreal. Realismo mágico? Não tanto. O surreal está mais aqui para uma atmosfera sutil muito nas entrelinhas. A não ser, é claro, na cena do pesadelo da mulher surda: a passagem da realidade ao sonho, e deste de volta a ela, foi realizada com grande expressividade através do plano-seqüência, causando magnificamente no espectador aquele estranhamento e, em seguida, a angústia e ansiedade de algo que não parece real, mas é; ou algo que é real, mas não parece – eis a dúvida assombrosa que caracteriza os sonhos.

O ultra-realismo de um filme sem foco narrativo pode ser associado à velha nova idéia da fragmentação do sujeito – conseqüentemente da narrativa – no mundo pós-moderno, urbano, pós-industrializado, etc. Sei que essa discussão toda é muito moderna, avançada, coisa e tal, mas tá. E aí? Particularmente, eu preferiria ver uma película que fosse mais do que uma versão “mundo cão” do velho ideal de Cesare Zavattini. Mas estou sendo chato. Obras de vanguarda não precisam ser obras-primas acabadas (entendendo-se vanguarda aqui como os usos do cinema digital). Enquanto pesquisa, ou “brincadeira” vanguardista, está tudo ótimo. Verdadeiramente.

De qualquer maneira, para que o efeito de surreal ficasse mais forte, o filme poderia ter investido um pouco mais no real: ou seja, no aspecto dramático da experiência das personagens. A primeira “cena” (a do japonês) é bastante promissora, no sentido de revelar com humanismo os absurdos banais e sutis arbitrariedades do cotidiano urbano. Mas o resto do filme vai descambando gradativamente para o caricato (praga tragicômica do nosso cinema), até a engraçada, mas sofrivelmente bobinha, última “cena”. O uso do plano-seqüência destaca o aspecto fenomenológico do “vivido”, da “intencionalidade” em uma sociedade completamente reificada, mas tais vividos – se não são tão pueris como nos filmes de Cláudio Assis – também estão aquém de algo profundamente convincente. Mais um filme “chocante”. Próximo.

quarta-feira, setembro 03, 2008

Zombie


Zombie (Itália, 1979, dir.: Lucio Fulci) é o “neo-terrorismo” italiano. O filme começa com um pequeno barco à deriva, adentrando o canal que separa a ilha de Manhattan do continente. Este barco carrega um zumbi, numa cena que emula o clássico Nosferatu (Alemanha, 1922, de F. W. Murnau). Siegfried Kracauer, no clássico estudo “De Caligari a Hitler: Uma História Psicológica do Cinema Alemão”, já assinalou que o vampiro e os ratos que a embarcação traz são pré-configurações da chegada do nazismo (constatação que já virou um lugar-comum). O engraçado agora é pensar que, em Zombie, os planos que mostram o pequeno veleiro destacam ao fundo a imponente presença das torres gêmeas do World Trade Center (é compreensível que, no cinema do final dos anos 70, elas fossem uma imagem bastante atraente, tendo sido inauguradas em 1976).

Seria a ameaça zumbi uma alegoria profética para a ameaça terrorista? Assim como nos filmes de George A. Romero, aqui os zumbis se espalham como uma peste incontrolável e apocalíptica. É o grande medo americano da ameaça à segurança e integridade nacionais (tão duramente conquistadas em sua história): o caos, absoluto e irreversível caos. No final do filme, o indefectível “zombie walk” – a marcha de zumbis pela ponte (do Brooklin?) dirigindo-se à “Big Apple” – pode alegorizar também os movimentos de imigração, outro terror arquetípico da psique norte-americana. Apesar de tudo, a fita de Fulci não se concentra nas significações políticas. A história está mais para um daqueles jogos de vídeo-game categorizados no gênero survivor: pessoas isoladas tentando escapar a qualquer custo do famoso cerco zumbi (“zombie siege” – bela expressão).

As grandes particularidades deste filme podem estar no aspecto “gore” (explícito) da violência, mas uma violência classicamente caricata, uma coisa à lá Zé do Caixão. A maquiagem dos zumbis é de primeira. Particularmente interessante é o fato de eles, aqui, andarem de olhos fechados. A trilha sonora, o figurino, o penteado e o trabalho dos atores trazem aquela delícia brega dos anos 70, uma coisa à lá Garganta Profunda. A fotografia em profundidade de campo deixa alguns planos bem bacanas também, além de que algumas cenas são muito bem boladas: a luta entre um zumbi e um tubarão debaixo d’água é impagável. O resto são outros elementos que não podem faltar num “zombie movie”: uma shotgun calibre 12, por exemplo. Quer melhor arma para enfrentar as corjas de mortos-vivos? Se um dia os mortos caminharem sobre a terra para comer a carne dos vivos, a primeira coisa que eu procurarei será uma boa carabina...