terça-feira, abril 17, 2007

Ironias


O pintor espanhol Francisco Goya (1746-1828) é um daqueles artistas cuja peculiar visão de mundo e de além-mundo não tem piedade para com os nossos olhos: seus quadros conjuram imagens que, quando familiares, concentram-se em aspectos digamos “incômodos” (a feiúra, o grotesco, o vazio espiritual, a violência, a mesquinhez); quando, por outro lado, o pintor dá tintas à sua imaginação fantástica, somos presenteados com as mais delirantes visões de um maravilhoso assustador (como o seu “gigante” na beira do mundo).

E. H. Gombrich diz, a respeito dos retratos pintados pelo mestre espanhol – como o do Rei Ferdinand VII, reproduzido acima: “Ele faz as suas expressões (as das pessoas retratadas) revelarem toda a vaidade e feiúra, a sua ganância e o seu vazio. Nenhum pintor de aristocratas, antes ou depois dele, chegou a deixar um registro assim de seus patronos”.

Veja-se como o historiador interliga os vocábulos “vaidade” e “feiúra”, como se a feiúra decorresse da vaidade, ou como se a vaidade não se importasse com a presença da feiúra para dominar o ânimo de uma pessoa. Quantos artistas, de qualquer das diferentes formas de arte representativa (pintura, escultura, teatro, literatura, fotografia e cinema), foram tão a fundo, ou sequer tiveram a preocupação de desmascarar a pequenez travestida de grandeza do espírito humano, especialmente em determinadas classes sociais? Resposta ainda mais difícil terá a seguinte pergunta: Qual é a parcela do público que perceberá e – mais difícil ainda – apreciará o sentido crítico dos retratos de Goya? Acredito que poucas pessoas. Será que o próprio Rei Ferdinand VII deu-se conta da “zombaria” que Goya perpetrou em seu retrato? Também acredito que não; caso contrário, o retrato muito provavelmente não teria sido aceito nem ficaria conhecido.

Eis a fina, sutil ironia praticada por Goya: o ridículo das pessoas impede que elas reconheçam o seu próprio ridículo, captado em belas tintas pelo grande artista. Não tenho dúvida de que o Rei Ferdinand VII achou o seu retrato muito “lisonjeiro”. Repito: para que haja tal efeito, a ironia tem que ser muito sutil. Se olharmos para o quadro do Rei Ferdinand VII de uma certa distância (ou se olharmos para uma reprodução pequena, como é o caso aqui), o que mais nos chamará a atenção é a postura majestosa do rei, em seu majestoso traje real. Os mais sensatos já poderão perceber aí a vaidade vazia e insolente, porém, os partidários ideológicos e culturais do rei ficarão fascinados com a “grandeza” real. Agora, ao olharmos com bastante atenção para os detalhes do rosto de Ferdinand VII (a curva dos olhos, da boca, o nariz, as bochechas coradas e até mesmo o cabelo caído sobre a testa), perceberemos com bastante clareza “a vaidade e a feiúra, a ganância e o vazio”. O rosto de Ferdinand VII revela somente um fidalgo mimado e petulante.

Será que um “fidalgo mimado e petulante” de nosso próprio tempo, ao ver a pintura acima, seria capaz de reconhecer e aceitar esse fato? Afirmo mais uma vez que (provavelmente) não, e como argumento cito a recepção que a obra do grande escritor brasileiro Machado de Assis teve em sua época.

A ironia na literatura de Machado de Assis (1839-1908) é a tradução mais perfeita da ironia na pintura de Goya. Como o mestre espanhol, o nosso “bruxo” procurou desmascarar impiedosamente as classes dominantes no Brasil imperial e escravocrata. Contudo, esse desmascarar só passou a ser compreendido uns 50 anos após a morte do escritor. Quando “caiu a ficha” para os historiadores e críticos literários, Machado passou de escritor medíocre a maior e mais revolucionário escritor brasileiro de todos os tempos (!) Peguemos o famoso romance Dom Casmurro: até hoje, para algumas pessoas, Capitu é a “vilã” da história; é difícil reconhecer a vilania do ciúmes e do machismo de Bentinho porque muitos homens e mulheres também são ciumentos e machistas. Fica mais difícil ainda as pessoas julgarem Bentinho, se observarmos o fato de que ele se apresenta o tempo todo como um cavalheiro culto, bondoso, ingênuo, bem-educado e bem-nascido. Por outro lado, Capitu, coitada, não passa de uma “alpinista social”... Neste sentido, quantos Bentinhos não existem até hoje em nosso meio e passam completamente despercebidos e impunes?...

continuação de Ironias

Tropas Estelares (EUA, 1997, dir.: Paul Verhoeven)
Como exemplo do aspecto mais peculiar na obra de Machado de Assis, reproduzo o trecho de um outro romance – Memórias Póstumas de Brás Cubas – mas cuja ironia é da mesma natureza que em Dom Casmurro:

“Talvez pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a quem não souber que ele possuía um caráter ferozmente honrado. (...) Argüiam-no de avareza, e cuido que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o déficit. Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com freqüência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais.”

Aqui, Brás Cubas procura defender o seu cunhado Cotrim. Mas os seus argumentos são um mais absurdo do que o outro. Neste pequeno trecho se acha incrivelmente concentrada toda a falácia e a hipocrisia, enfim, a desfaçatez que nossas elites historicamente possuem – como se pode ver. O fato de não se poder “honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais” é exatamente o argumento utilizado pelos criminosos nazistas no tribunal de Nuremberg: “eu só estava cumprindo ordens...” Quantas barbaridades não se fazem até hoje sob a justificativa de que “é apenas o meu trabalho...”? Entretanto, o mais importante de atentarmos aqui é: Quantas pessoas, hoje, que tenham o mesmo caráter, ideologia e (ou) classe social de Cotrim e de Brás Cubas, não concordariam com a argumentação do narrador, e assim, passariam longe de entender de fato a literatura de Machado de Assis?

Enfim, o cinema. Na “silver screen” também temos (raros) exemplos da ironia e do sarcasmo de Goya e de Machado de Assis. O exemplo que, para mim, é mais evidente, encontra-se no longa Tropas Estelares (“Starship Troopers”, EUA, 1997, dir.: Paul Verhoeven). Para muitos, este será apenas um filme de ação desprezível e tolo, apegado a efeitos especiais e ao caráter épico mais pueril; para outros, que o assistirão com olhos mais perscrutadores, esta será uma produção descaradamente “nazista”, que faz a apologia de uma sociedade futura dominada pelo militarismo beligerante que busca sempre “bodes expiatórios”. Estes últimos espectadores trarão como argumento o fato de alguns planos de Tropas Estelares serem nitidamente inspirados em filmes de Leni Riefenstahl, a “cineasta de Hitler”. Contudo, alguns espectadores – com visão ainda mais profunda e mais sensata – reconhecerão a sutil ridicularização que Paul Verhoeven faz de toda uma cultura que é, no fundo, nazi-fascista. O diretor de Robocop (outro filme profundamente sarcástico) critica com muita ironia uma mentalidade muito próxima da dos falcões de George W. Bush, a partir de um de seus maiores veículos de expressão na cultura de massas: o filme hollywoodiano de ação, de guerra, de efeitos especiais. Assim, ele acaba ironizando também esse mesmo tipo de cinema. Temos que bater palmas para tal façanha, que está muitos anos-luz à frente da sisudez pretensiosa e intelectualizante de películas como Dogville.

Os personagens de Tropas Estelares são tão frívolos quanto Brás Cubas ou quanto aparenta ser o Rei Ferdinand VII. Paul Verhoeven usa o filme de caráter épico para desconstruir a si mesmo – desconstruindo também a cultura por trás dele – assim como Machado de Assis usa o romance folhetinesco com a mesma finalidade e Francisco Goya usa o retrato palaciano para os mesmos fins desmascaradores.

No entanto, ainda há tantas pessoas que acham que um “robocop” seria a solução perfeita para os problemas de criminalidade e violência no Brasil...

sexta-feira, abril 06, 2007

Lendo e Aprendendo


Entrevista concedida pelo lingüista e filósofo búlgaro Tzvetan Todorov para a revista francesa Télérama e reproduzida por Jorge Coli na Folha de S. Paulo:

(Pergunta): “No seu último livro (“La Littérature em Péril”, A Literatura em Perigo), o sr. Diz, a propósito do ensino da literatura, que, “na escola, não se ensina aquilo que os livros dizem, mas aquilo que dizem os críticos. O senhor pode explicar a sua opinião?”
(Todorov): “Há algum tempo que, na escola, pararam de refletir sobre o sentido dos textos e passaram a estudar de preferência os conceitos e métodos de análise. Nesse sentido, é possível dizer que se estudam as teorias dos críticos, e não as obras dos autores.
Ora, para nós, ignorante é quem não leu “Madame Bovary” (de Flaubert) ou “As Flores do Mal” (de Baudelaire), e não quem não sabe, por exemplo, distinguir focalização interna de focalização externa.
Estou convencido de que, para aceder à “grande literatura”, deve-se primeiro aprender a amar a leitura. Para tanto, passar pela literatura de juventude parece-me ser a via mais indicada. Eu mesmo, há muito tempo, comecei a ler versões simplificadas dos clássicos em búlgaro.
“Os Miseráveis” (de Victor Hugo) não tinha mais do que umas cem páginas. Isso não me impediu de abordar o texto completo do romance alguns anos mais tarde.
Desse ponto de vista, eu recomendo sempre “O Conde de Monte Cristo” (de Alexandre Dumas) ou, por que não?, as aventuras de Harry Potter.”
(Pergunta): “Quais os conselhos para um jovem estudante que deseja se lançar nos estudos literários?”
(Todorov): “Antes de tudo, não confundir os meios e os fins. Os fins da leitura de textos literários são os de melhor compreender o sentido deles e, por meio deles, o que nos dizem da própria condição humana.
Os meios são todos os métodos de aproximação crítica, que podem nos permitir ler melhor, com a condição de não formarem uma cortina de fumaça diante dos textos. O que aconselho, portanto, é nunca perder de vista os textos literários neles próprios e, sobretudo, os grandes textos.”

Jorge Coli, no texto que desenvolveu em torno desse assunto, diz: “Esse é um caso sintomático, no qual a especulação intelectual prescinde o objeto. (...) Quantos leitores de (Walter) Benjamin, que conhecem e citam suas referências a Baudelaire e Proust, leram, de fato, Baudelaire e Proust?”

Na Universidade, sofri muito com esse tipo de “especulação intelectual”. Nas disciplinas de literatura que cursei, parece que há uma lei implícita de que é proibido fazer uma reflexão pessoal sobre o texto literário; diz-se que isso não é científico, não é metodológico. Para muitos professores que tive, “científico” seria “papagear” o discurso deste ou daquele crítico, teórico ou historiador, os quais também têm de ser escolhidos com muito cuidado, pois se o aluno tiver a temeridade de se abrigar à sombra de um pensador que não esteja na moda do dia, também ganhará nota zero. Uma das poucas exceções positivas que vivenciei, foi justamente numa disciplina de cinema, na qual o professor (um dos poucos grandes mestres que tive na Universidade) fez a questão de deixar bem claro e enfático que queria que fizéssemos uma análise pessoal do filme em questão; disse com autoridade que não queria ler coisas do tipo: “De acordo com o filósofo Nietzche...”, pois se quisesse saber as idéias de Nietzche, ele leria os livros de Nietzche, e não o trabalho do aluno. No trabalho do aluno, ele queria conhecer quais as idéias que o aluno tem. Sabedoria rara no meio docente acadêmico.

Não sou, é claro, totalmente contrário à metodologia científica, ou a citações que enriquecem a discussão de um determinado objeto. A fortuna crítica tem a sua grande importância e contribuição para o estudo de uma obra de arte. Mas quem está, ou já esteve recentemente por dentro do meio acadêmico, sabe muito bem o “perigo” que sofre a Literatura (e também o Cinema), de que falam Todorov e Coli. Mesmo fora das escolas, certas críticas de filmes que se lêem por aí são tão apegadas a clichês metodológicos daquela “especulação intelectual que prescinde o objeto” que fica-se com a impressão de que o crítico não viu o filme. Se viu, não precisava ter visto, para fazer críticas assim...

P.S.: A (des)propósito: Todorov não parece o Barbosa, do saudoso “TV Pirata”?

quarta-feira, abril 04, 2007

Intriga Internacional


Uma única seqüência de Alfred Hitchcock vale mais do que muitos filmes inteiros que assomam por aí. Nesta madrugada insone, liguei a TV e eis que o combalido SBT estava exibindo Intriga Internacional (“North by Northwest”: EUA, 1959). Sentei-me a tempo de ver – mais uma vez – a famosa perseguição de Cary Grant por um avião. Para quem nunca viu (demorou!), aqui vai: O personagem de Grant deve se encontrar com um homem desconhecido no meio de um campo árido e ensolarado. Num plano aéreo e fixo, muito à distância, vemos a vastidão do deserto, atravessado por uma estreita estrada, na qual vemos se aproximar, lentamente, um ponto minúsculo que é um ônibus. Chegando ao centro do quadro, o ônibus pára e dele desce um ponto ainda mais minúsculo que é Cary Grant em seu indefectível terno cinza – combinando com o cabelo grisalho.

O ônibus vai embora, deixando no quadro do imenso deserto um pequeno risco ereto que mal se distingue de outros pequenos riscos eretos que são estacas fincadas no chão, possivelmente definindo território, embora não haja cercas. Este plano, mostrando a pequenez quase imperceptível do homem naquele ambiente inóspito, é razoavelmente longo. Cary Grant, mostrado então em plano americano (o choque provocado pela enorme diferença de distância entre este plano e o anterior vai contra a cartilha cinematográfica que se leciona na Universidade e mostra o gênio do mestre do suspense), olha para todos os lados: subjetivas mostram o que ele vê, alternando-se com o mesmo plano americano de sua figura, no qual percebemos a preocupação no rosto da personagem; para onde quer que se volte, ele vê apenas a extensão desolada e aparentemente infinita do deserto. Aquelas mesmas estacas, fincadas em perspectiva, aumentam essa sensação.

Também é significativamente encaixado aí um plano em conjunto de Cary Grant, ainda pequeno no canto esquerdo da tela, enquanto o canto direito é tomado pelo vazio. Seria interessante relacionar esta imagem ao plano antológico da perseguição, que será citado mais adiante, onde Hitchcock também faz uma composição criativa do quadro baseando-se nos lados esquerdo e direito: seja desarmonizando-os completamente, seja harmonizando-os de maneira insólita. No horizonte da estrada, um pequeno ponto se aproxima a grande velocidade: é um carro. Vemos a ansiedade no rosto de Grant. Contudo, o veículo passa reto e perde-se no horizonte oposto. Frustração. O tempo passa. Outro carro: nova esperança e novo desgosto. Então vem um ônibus: este dá um banho de poeira em Cary Grant. A fineza do humor de Hitchcock, humor sempre negro e cruelmente irônico, sarcástico, é impagável.

Nesta livre e indigna descrição que faço da seqüência toda, já se pode perceber a sua demora. Essa lentidão é fundamental para a criação e manutenção da atmosfera dramática. Vale a pena dizer também que não há qualquer música. São essas pequenas e simples técnicas que fazem a grandeza do artista e o diferenciam dos demais. Não consigo deixar de pensar que muitos desses aspectos de decupagem (como a lentidão proposital) seriam as últimas coisas que passariam pela cabeça de muitos jovens “filmmakers” contemporâneos, alguns deles bastante talentosos e bem considerados; tudo para tornar o filme mais dinâmico e para evitar “barriga”. Alfred Hitchcock é um daqueles mestres que não fazem escola. Por que será?

Mas retornemos à “Intriga Internacional”. Atravessando o campo, vem chegando um veículo; ele pára, deixa um homem e vai-se. Cary Grant fica reparando fixamente neste cavalheiro bem vestido. Adivinhamos seus pensamentos: “Será que é ele quem devo encontrar?” Nosso herói dirige-se até ele para tirar satisfações: não, não é “ele”; o homem está apenas esperando o próximo ônibus. Ambos reparam em um pequeno avião pesticida sobrevoando longe os campos. O homem estranho diz: “Que esquisito! Aquele avião está jogando veneno onde não há plantação...” Esta fala, dita naquele momento, se você já assistiu ao filme antes, torna-se uma das mais assustadoras da história do cinema. Também aqui temos um grande exemplo da sutilíssima ironia de Hitchcock.

Providencialmente, chega o ônibus do homem. Cary Grant está sozinho novamente. Bem, não tão sozinho: eis que o pequeno avião se aproxima, vem se aproximando direta e assustadoramente de Cary Grant, que tem de se jogar ao chão; o avião quase o atropela. À distância, a aeronave dá a volta – jamais chegamos a ver o seu piloto. Cary Grant vira-se, levanta-se e começa a correr. Em um plano antológico, vemos Grant correndo, do lado direito do quadro, enquanto o avião o persegue por trás, do lado esquerdo, cada vez mais perto e atirando. Um homem, num campo isolado e completamente aberto, perseguido por um avião homicida. A absoluta falta de esperança na defesa, a inutilidade de qualquer tentativa nesse sentido, que só poderia ser ingênua e ridícula, a diferença quase covarde de proporção entre um avião armado com metralhadoras no ataque e um homem desarmado – mas com terno bem alinhado – na defesa, são idéias de uma força quase mítica. Hitchcock adora essas idéias insólitas e curiosamente significativas.

Agora, assista ao filme e veja como a cena termina. Por ora, é suficiente dizer que vemos a maioria dos filmes de cinema como se estivéssemos lendo romances folhetinescos. Isto é, se uma obra, se um discurso narrativo não investe de uma maneira particular na estética, a única coisa em que nos concentramos então, que desperta o nosso interesse, é a própria narrativa em si. Ficamos ansiosos pela história, em saber como se desenvolve e como se resolve. Com os (melhores) filmes de Hitchcock não é assim. Nós poderíamos vê-los dublados em grego, que ainda assim não perderíamos tanto quanto alguns poderiam supor. O próprio trabalho gestual e facial dos atores, para começar, já seria suficiente para entendermos as linhas e orientações do drama. Assista-se aos filmes do “mestre do suspense” com o som da TV em “mute” e entenderão-se perfeitamente as disposições do diretor em relegar o mínimo de significação aos diálogos, em chamar os atores de “gado”, em defender um cinema puro cujo desenvolvimento teria sido prejudicado pela invenção do falado.

Isso tudo não quer dizer, é lógico, que o enredo é fraco, que o roteiro dialogado não tenha qualquer importância. O buraco é mais embaixo. Ver um filme de Hitchcock não é como ler uma narrativa romanesca; ver Hitchcock é como apreciar uma grande pintura, ou ouvir uma grande música. Não importa quantas vezes se repete, nunca se fica enjoado, e sempre se descobrem novas nuanças, é sempre uma nova experiência. Eis a grande arte. Cada imagem em uma película de Alfred Hitchcock é rigorosamente pensada, é dotada de uma identidade estética e semântica única, e busca sempre relacionar-se nos mais altos níveis estéticos e semânticos com as outras imagens no filme. Há algo de Eisenstein na montagem desta famosa seqüência de “Intriga Internacional”. Em algum ponto entre a pintura e a música encontra-se a sétima arte.

segunda-feira, abril 02, 2007

Cartas de Iwo Jima


Clint Eastwood é o cineasta mais clássico em atividade. Clássico num sentido bem específico: seus filmes são tão equilibrados, que a experiência de contemplá-los compara-se à vivência que se tem de uma obra da antiguidade clássica greco-romana. Todos os elementos são bem dosados e relacionados de forma significativa: a sobriedade narrativa e técnica ao lado da forte emoção de que se carregam os fatos e personagens mostrados; esses dois elementos magistralmente conectados à preocupação de se estudar um acontecimento: desconstruindo-o de sua estrutura hipertrofiada – caso do mito do “herói” em A Conquista da Honra – ou construindo-o a partir do pouco que se tem sobre ele – caso das Cartas de Iwo Jima. No primeiro caso, trata-se de um fato, ou visão sobre um fato, que já está presente e inquestionavelmente consolidada por mais de 60 anos: a missão de Eastwood torna-se, então, fazer com que se vejam os elementos humanos – específicos, concretos e inalienáveis – de que se compõe o mito, e que muitas vezes acabam escondidos por trás de sua abstração generalizante. No segundo caso, temos a abstração da linguagem verbal das cartas, que referenciam com maior distância do que o faz a imagem fotográfica mítica os mesmos elementos humanos específicos, concretos e inalienáveis de qualquer acontecimento histórico, especialmente em se tratando de uma guerra; em Cartas de Iwo Jima, ainda há o agravante de serem cartas só recentemente descobertas de soldados (que já se sabiam) derrotados, mortos e sem o apoio de uma mitologia nacional de 60 anos em torno deles.

Entendemos assim a missão de Clint Eastwood: aproximar-nos um pouco mais da humanidade em todas as situações que são no fundo humanas, com carinho e cuidado, em especial todas as vezes em que tal humanidade parece estar relegada ao segundo plano. Junte-se essa preocupação ao caráter classicizante de sua realização cinematográfica e teremos aí um grande artista no sentido antigo do termo. Não que ele deva ser imitado ou visto como modelo, mas o Sr. Eastwood deve ser uma das lições fundamentais a serem aprendidas por jovens cineastas de espírito indômito. Repito: o equilíbrio e o ar de sabedoria anciã que sentimos em filmes como Cartas de Iwo Jima é o que faz a delícia da experiência de se ver tais obras. Tudo sem arrogância, sem pedantismo, mas também sem frivolidade. O meio-tom da narrativa, por um lado sem ser grandiloqüente, por outro desprovida de condescendência romântica, é a melhor solução para um filme de investigação histórica: épico e lírico a um só tempo, aparando as arestas supérfluas e excessos de ambos os gêneros. Um cineasta com menos sabedoria ou com mão mais pesada, advertida ou inadvertidamente despencaria para a tese ou para o folhetim.

Sun Tzu, na Arte da Guerra, traz a lição de se conhecer o inimigo. Esse fator, certamente, pode definir em alguns casos a vitória ou a derrota: lembramos do cenário recente, em que os militares norte-americanos, que buscam essencialmente sobreviver à guerra e voltarem são e salvos para suas casas e suas famílias, não sabem como enfrentar guerrilheiros iraquianos islâmicos para quem a morte em batalha é a maior das recompensas, para quem não existe “essa” de voltar para casa, tanto porque eles já estão em “casa” e é melhor morrer defendendo suas casa do que vê-la ocupada por um invasor. Se o invasor não compreende isso – tanto porque o ponto de vista dele é bem diferente – já dá um grande passo rumo à derrota. Foi o mesmo no Vietnã. Mas e quando, buscando conhecer o inimigo, o outro, acabamos por encontrar um reflexo de nós mesmos? Nesse estágio, desmoronam-se – ou terminam de desmoronar – quaisquer motivos, ideologias, causas, necessidades, obrigações, direitos ou deveres que temos de lutar. Quando nos confrontamos com o aspecto humano mais essencial da guerra, ou seja, indivíduo contra indivíduo no campo de batalha, tudo muda de figura. Em Cartas de Iwo Jima, temos o exército japonês defensor de seu próprio solo sagrado; mas esse solo – sagrado na cultura japonesa – não passa de uma ilhota inóspita, com cheiro constante de enxofre (conforme nos é explicado no começo de A Conquista da Honra): é um cenário perfeito para um inferno marcial. Os soldados japoneses sentem-se ali tão distantes de seus lares e de seu mundo quanto os norte-americanos. É então que os princípios da guerra se desfazem. A cena em que o oficial Barão Nishi (Tsuyoshi Ihara) lê para os seus homens a carta escrita pela mãe do soldado americano capturado e tratado por ele, mas que acabara de falecer, é tocante e significativa: testemunhamos a derrocada final do moral da tropa nos olhares daqueles soldados que reconhecem que o “inimigo” não passa de um garoto como eles, com uma mãe como as deles, que diz inclusive as mesmas palavras de recomendação: “faça o que é certo porque é certo”.

Descobrindo essa verdade, a guerra perde o sentido. Os altos oficiais podem dizer que os americanos são covardes, que não têm a força de vontade e disciplina dos japoneses, que não estão dispostos a morrer pelo seu país e pelo imperador (o costume do suicídio como morte honrosa quando a vitória já não é possível e que é mostrado de maneira contundente e comovente em pelo menos três grandes cenas do filme), e que apesar de terem a superioridade numérica e tecnológica, os japoneses têm essa vantagem “espiritual” na defesa de Iwo Jima. Mas esse discurso cai por terra quando se conhece o soldado Sam e a carta de sua mãe, quando se está realmente perdendo a batalha, ainda mais quando se é convocado para a guerra à força. Nesse momento, os valores humanos mais essenciais prevalecem sobre os nacionais. Entendemos a desesperada revolta do jovem soldado Saigo (Kazunari Ninomiya), cercado por norte-americanos e mesmo assim brandindo a sua pá, não como um último ato de patriotismo, mas como defesa da honra do general (Kuribayashi) que ele admirava e que tinha como dever de amizade enterrar (foi o pedido do próprio general), após ver a sua pistola (muito cara ao general) na cintura de um soldado americano, como mero espólio de guerra. Essas questões não foram, é claro, descobertas por Clint Eastwood ou pelo roteirista Paul Haggis; estão presentes em outros filmes de guerra. Eu, particularmente, tive meu primeiro contato com elas aos sete anos de idade, em um livro infanto-juvenil (cujo título infelizmente não lembro) que narrava as aventuras de um ganso atrapalhado na guerra. Entretanto, a maneira como Eastwood coloca tais idéias em filme é o que há de especial.

O general Kuribayashi (Ken Watanabe) é o que melhor sabe a insensatez daquela guerra: conhecedor, antigo amigo e admirador dos EUA, é o que mais “conhece o inimigo”, mas justamente esse conhecimento mina a sua vontade de lutar, tendo ainda o agravante de não receber quaisquer esforços do seu próprio país para a defesa da ilha. Mesmo assim, dá tudo de si ao serviço do Imperador. É uma personagem magnífica e magnificamente interpretada por Watanabe. As relações que se estabelecem entre ele e o soldado Saigo fazem parte daquele equilíbrio belo e significativo do cinema de Eastwood. Um filme assim, passando-se naquela ilha, imagem do inferno e solo sagrado, palco (com tanta significação e coerência que até parece obra de ficção, mas é real) de um drama complexo e contraditório como a própria humanidade, de vôo épico e mergulho lírico, adquire uma grandeza transcendente própria da tragédia – que, aliás, é outro elemento da dimensão clássica nos filmes de Eastwood, presente de maneira mais exemplar em Sobre Meninos e Lobos (“Mystic River”, 2003) – apesar da humildade e da sobriedade do estilo do diretor. Mas é isso mesmo o que o torna dignamente clássico e admirável.